Querida K espero que tudo esteja bem com você deve ser aproximadamente dezenove e dez agora e você mesmo estranhando o fato de eu estar atrasado dez minutos foi remexer no meio das fitas procurando aquela do Charlie Parker que eu adoro para tocá-la no tape-deck quando alguém tocou a campainha e lhe entregou esse bilhete meu e eu sinto muito que tenha que ser assim mas eu te juro que pensei mil vezes em te ligar pensei também em deixar para quando chegasse em casa e ter uma conversa franca e definitiva com você e finalmente pensei em escrever um bilhete como vê a última alternativa me pareceu mais apropriada tudo isso é muito desagradável para mim e imagino que deva ser para você também mas não tinha outro jeito não podia suportar nem mais um dia cuidado para não deixar o feijão queimar como sempre o jantar não deve estar pronto e o feijão deve estar cozinhando mas não é só por isso uma coisinha à toa que somada a tantas outras coisinhas fazem uma coisa enorme que eu não saberia lhe explicar na verdade resolvi escrever por não querer mais conversar com você pois sempre acabávamos convencidos que o melhor mesmo era deixarmos tudo como estava e nos abraçávamos meus lábios pressionavam suas bochechas mentirosas eu sentia o gosto salgado de suas lágrimas e passava a lambê-las depois seu rosto até que encontrava sua boca e num beijo apaixonado suspirávamos um eu te amo sem muita importância para ambos e tudo ficava bem por algumas semanas até que recomeçava e aí a mesma conversa as mesmas lágrimas suas os mesmos beijos meus seu mesmo corpo frágil em meus braços paternos eu também adorava tudo isso mas não acho que era o bastante e você não tinha com o quê se preocupar mas eu você sabe como eu sou sempre inquieto e insatisfeito essas viagens pra lá e pra cá entrevistas shows palestras autógrafos eu não suportava mais e se não mandei tudo para aquele lugar foi por sua causa porque sabia como você precisava disso para viver sob minha sombra sinto muito mas não deu pra agüentar dentro da lata de biscoitos deixei o número duma caderneta de poupança que abri em nome do P e um cheque para você espero que isso dê para se arranjarem por algum tempo pois não pretendo voltar mais de verdade lembra aquelas noites em que eu me embebedava sozinho até altas madrugadas porque você não agüentava ficar muito tempo acordada uma dose duas doses três doses a garganta apertando deixando um desejo amargo de confidência que eu tinha que engolir de volta por estar sozinho e as incertezas que me assolavam a alma as dúvidas de estar fazendo ou não as coisas certas nas horas certas mas não é só por isso não mas por um monte de outras coisas também quanto mais falo mais distante me sinto de você e é uma sensação boa sabe não que eu não te ame você sabe que sempre te amei e acho que sempre vou te amar mas é algo diferente lembra quando você vinha com aquelas estórias de outras mulheres e eu sempre me safava das explicações deixando você cheia de inseguranças e dúvidas eu adorava te deixar insegura mas confesso que nunca tive ninguém além de você e não sei nem por que estou te contando isso agora mas a verdade é essa e me sinto bem sentirei muita saudade de caminhar minha mão pelo teu corpo meus dentes roçando o bico do seu seio nossos soluços e grunhidos indecifráveis no escuro o sono agitado e as manhãs seguintes sem qualquer comentário como você pode notar não estou levando nada das nossas coisas até mesmo minhas roupas a organização da casa sempre partiu de você e agora sinto uma certa distância desses objetos venda tudo ou faça o que bem entender e minhas roupas se quiser pode dar para seu irmão aquele gorila com cara de gente desculpe lembra da nossa última viagem quando fomos para as praias do sul e você gritava apavorada quando eu ultrapassava os caminhões nas curvas da serra e emburrava no seu canto quando eu excedia na velocidade voltando a falar comigo depois de muito tempo quando eu lhe contava a estória dos limpa-brisas mágicos que eram um casal de pequenos palhaços dançarinos brincando na chuva para nos trazer sorte e você ria a contra-gosto sem jeito e envergonhada batendo em meu braço não tínhamos o P naquela época e tudo era mais irresponsável mais aventureiro não que o P tenha sido uma coisa ruim que nos aconteceu pelo contrário eu o amo e você sabe disso mas sinceramente não pretendo mais vê-lo e nem a você por isso quando achar oportuno conte-lhe uma estória qualquer sobre o pai se eu pudesse ajudar diria que o pai morrera devido a um exagero de vida qualquer como a maioria de meus ídolos e você conhece as histórias dos meus ídolos mortos talvez assim ele se orgulhe de mim algum dia confesso que sentirei saudades de você massageando meus poucos cabelos sentir a tranqüilidade do peso de suas mãos sobre meus medos recolhidos seus dedos afagando meu pescoço e orelhas em movimentos quase automáticos mas com ternura aquele conhaque que às vezes bebíamos enquanto avermelhávamos nossos olhos e amplificávamos nossa percepção lembra quando brincava com você dizendo que no fundo mesmo tudo o que você desejava na vida era poder pagar suas contas em dia sonhar com a vida eterna e envelhecer numa varanda aconchegante duma cidadezinha qualquer e tranqüila do interior você ficava brava comigo acho que na verdade eu é que sempre quis isso perdoe-me por aquela vez que eu não percebi você desmaiada no sofá eu sei que faz mais de dois anos mas não consigo me perdoar e acho que você também te cuida adeus seu E.
Querido E não pode imaginar como é duro para mim escrever essas linhas você deve ter chegado como sempre chega quando não há nada marcado no horário normal às dezenove horas portanto agora deve ser dezenove e dez pois você sempre vai direto ao banheiro sem olhar para nada em sua volta e provavelmente não notou esse bilhete em cima da estante apoiado em seu livro preferido de Milton lembra quando eu estava grávida do P e você chegou eu estava desmaiada no sofá e você só me notou quando saiu do banheiro e mesmo assim só me notou porque não estava tocando aquela fita do Charlie Parker que eu sempre colocava no tape-deck para você ouvir quando chegava e você deve estar colocando-a no tape-deck agora é eu sei que você sentiu muito e sempre vai sentir ontem mesmo você se desculpou novamente passados dois anos lembra mas não é só por isso aliás não conseguiria lhe falar o por que são treze e quinze agora e dezenove e onze para você devo estar bem longe e só não digo onde porque ainda não sei aonde vou talvez se soubesse também não lhe diria é muito chato isso tudo mas sei que será melhor assim tem salada e ovo cozido na geladeira até o tempo se torna mais dócil agora que não sinto você ao meu lado e devo confessar-lhe que me agrada essa sensação algo como poder sentir o próprio corpo num espaço imenso sem paredes sem portas ou janelas nua livre para todas as coisas que eu não possa fazer mas sei que sou livre para poder não fazê-las livre para lhe dizer tudo que a garganta não conseguia expelir enquanto soluçava mas agora não falo pois não tenho vontade e sou livre para isso nunca fui muito boa para explicar as coisas e muito menos para escrever você me conhece e esse bilhete comecei com a intenção de dizer tudo definitivamente não suportava mais viver para você apenas suas músicas seus amigos suas estórias suas pinturas seus filmes suas peças sua poesia sua literatura sua visão de vida sua postura sua isso sua aquilo sua aquilo-outro e as minhas eu sei que conversamos muito à respeito e que você chegou à conclusão que eu não tinha nada que valia a pena e eu até concordei mas então será que você precisava de mim aí você dizia preciso sim mas na verdade não queria mais ter essas conversas com você pois sempre me convencia de que você estava certo e nos abraçávamos seus lábios impuros pressionavam minhas bochechas avermelhadas sentindo o salgado de minhas lágrimas que você adorava e passava a lambê-las até que encontrava minha boca num beijo exageradamente caloroso um eu te amo sem muita valia para ambos e tudo ficava bem por algumas semanas até que recomeçava e aí a mesma conversa os mesmos braços que me protegiam as mesmas lágrimas minhas os mesmos beijos teus eu também adorava tudo isso mas não acho que era o bastante você tinha sua vida agitada e badalada seus discos vendendo em todo o país shows entrevistas seus livros esgotando edições seus textos de teatro sendo montados no exterior você dizia que eu te completava mas eu não fazia absolutamente nada a não ser lhe acompanhar cuidar da casa do P e fazer sexo você dizia que eu era demais na cama vivia dizendo isso lembra mas se eu era tão boa assim para que as outras que outras você dizia num tom irônico que nunca chegou a me convencer e quero que você saiba que eu também já tive outros outro para dizer a verdade um só e foi muito bom não na verdade não foi nada bom pois sempre te amei como você pode notar não estou levando nada das nossas coisas deixando tudo para você se quiser pode dar para suas amantes embora não me agrade a idéia de saber que vagabundas estarão usando minhas roupas desculpe quase que recomeço aquela ladainha toda não se preocupe com o P pois eu saberei como dar uma boa educação a ele embora reconheça que nunca conseguirei ensinar tudo o que você queria que ele aprendesse mas pelo menos vou dar a ele uma oportunidade de escolher as coisas e para todos os efeitos vou dizer a ele quando tiver idade para entender que o pai morreu devido a um exagero de vida qualquer como a maioria de seus ídolos e acho que isso soará bem romântico acho que você gostará e ele sentirá orgulho de você bem ao seu estilo confesso que sentirei saudade de massagear seus poucos cabelos e sentir suas idéias inquietas borbulharem sob o peso de minhas mãos e meus dedos afagando seu pescoço e orelhas em busca de atenção e não se importando em não obterem e aquele conhaque que bebíamos enquanto avermelhávamos nossos olhos e amplificávamos nossa percepção lembra quando brincava comigo dizendo que no fundo mesmo o que eu queria era poder pagar minhas contas em dia sonhar com a vida eterna e envelhecer numa varanda aconchegante duma cidadezinha qualquer e tranqüila do interior acho que é isso mesmo que eu quero me perdoe se decepcionei você boa sorte e adeus sua K.
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