2 de novembro, 9 da noite: dia dos mortos. Ligo para Michelle e sou atendido por uma secretária eletrônica. Odeio falar com máquinas, me sinto um perfeito idiota, talvez por não conseguir manter a naturalidade que uma conversa humana teria. A voz robotizada me transmite a mensagem “No momento não posso atendê-lo, por favor, após do sinal, deixe seu nome e seu telefone que mais tarde eu entro em contato, tá? Um beijo!” Uma voz extremamente sensual para um recado endereçado a alguém que muitas vezes pode ser ninguém. E por que o recado dizia “No momento não posso atendê-lo…” e não “No momento não posso atendê-la?” As mulheres são mesmo umas putas. Desliguei o telefone sem nada falar.

3 de novembro, meio-dia: levanto. Sem razão aparente, sempre me levanto ao meio-dia, sem despertador, sem relógio no quarto para saber as horas, sem compromissos marcados, simplesmente levanto e observo que o relógio da sala marca meio-dia. Qualquer dia desses, vou fazer algo importante ao meio-dia, mas não hoje. Esvazio as ratoeiras desarmadas e com ratos presos pelo rabo e coloco novos pedaços de queijo. Os ratos não são o meu maior problema, mas as baratas… as baratas eu não consigo eliminar. Todos os dias recolho dezenas de baratas mortas do chão, e no dia seguinte, por mais veneno que eu espalhe pela casa, lá estão elas de novo, uma porção delas, correndo por cima das minhas panelas, na pia, na mesa da cozinha, na sala, no banheiro, na cama… Não tive vontade de ligar para Michelle, além do que, não gosto de incomodá-la no serviço. Trabalhar de garçonete não deve ser fácil.

4 de novembro, 9 da noite: após algumas anotações para uma estória pornográfica que tenho que entregar até o final da semana para uma revista ordinária que explora o sexo aos mais baixos níveis, resolvi ligar para Michelle. Novamente a voz robotizada que não parecia ser a dela (ou pelo menos eu não estava reconhecendo, pois nunca conhecera a Michelle-robô pessoalmente) me informa que não é possível atender agora. Pessoas nunca deveriam ser atendidas por máquinas… é deprimente. Coloco um disco de Varèse na vitrola, Poème Electronique. Só essa reformulação de sons feita por Varèse, com o uso de osciladores eletrônicos, filtros e outros artifícios, me faz pensar nas coisas boas da vida.

5 de novembro, meio-dia: após meu desjejum, um pedaço de toicinho defumado, não muito frito, e um copo de bourbon, ligo o aparelho de TV, numa das raras vezes que me dedico a tamanha perda de tempo, e ouço as notícias: mortes aqui, mortes lá (tenho a impressão que é mais chique morrer no exterior), fome acolá, investigações nos cofres federais, et cetera. Preciso arejar. Saio de casa sem destino. Vou até o centro da cidade vasculhar alguns sebos. Gosto de entrar em sebos para sentir o cheiro de mofo deixado pelos ácaros e observar as pessoas se entupindo de livros, tentando com isso esconder seu lado imbecil. Já nas livrarias da moda não gosto muito de ir, o cheiro de coisas novas me enoja, embora as pessoas sejam as mesmas, preocupadas em ler, não importa o quê. Tanta leitura, tanta cultura e no final, todos cagam fedido pra cacete e apodrecem depois que morrem.

6 de novembro, 9 da noite: devo ser um daqueles casos de supersexualidade, pois chego a me masturbar cinco vezes ao dia, todos os dias, e isso em nada me atrapalha se por acaso aparecer uma transa eventual. Já me aconteceu de, depois de gozar quatro vezes com uma dona, chegar em casa e tocar duas punhetas. Ligo para Michelle. Começo a sentir uma certa simpatia pela voz que me atende todas as noites, que nem ao menos sei se é mesmo de Michelle. Começo a me excitar por ela. Dedico uma punheta à secretária de Michelle, saciando meus desejos sexuais numa ejaculação impressionante.

7 de novembro, meio-dia: hoje acordei às sete horas da manhã. Apesar da hora, não estranhei o fato de não ter acordado no meu horário habitual. Sinto que hoje será um dia especial, talvez o dia de fazer algo importante ao meio-dia, por isso levantei mais cedo, para saber o que fazer.

Se Michelle fosse uma puta, como a maioria das mulheres, talvez eu pudesse dar mais sentido a isso tudo. Se ela tivesse dupla identidade, se me desse um pé no rabo ou coisa parecida, se o fato de eu estar sem emprego fixo me afetasse de alguma maneira, se eu fosse um babaca sentimental, se eu fosse um viciado em drogas, sem dinheiro para aliviar as dores horríveis que consomem os segundos de cada minuto de minhas horas, das vinte e quatro horas de cada um dos sete malditos dias, de todas as quatro longas semanas que formam apenas um dos intermináveis doze meses de um ano rastejante, entre tantos, se eu fosse um maníaco compulsivo por alguma coisa qualquer, mas não, eu sou normal. Apenas acho, na verdade, que cada vez mais e gradativamente as coisas vão perdendo o sentido, a graça. Ligo para michelle. Eu nunca havia ligado para ela durante o dia. Michelle-robô atende, com aquela voz sexy-appeal. Deixo um recado: I’m sorry baby, but the time goes by, estou apaixonado pela sua secretária eletrônica e não sou maduro o bastante pra suportar um amor platônico.

Meio-dia de invernia: estou no banho agora. A paisagem opaca e sem vida revela meu coração, os azulejos brancos manchados, o chão de ladrilhos hexagonais vermelhos forrados de pequenos fios de cabelo, as roupas sujas dentro do cesto de vime, o armário de fórmica verde. Da banheira posso observar, pela janela, as pessoas correndo atrás de suas obrigações, o céu cinzento, a garoa fina… Mas nada disso importa. O que realmente me fascina é minha crescente paz, ao ver o vermelho do sangue que escorre dos meus pulsos se misturar à água morna.