Não gosto de chegar atrasado ao trabalho. Meu chefe é daqueles hippies das antigas, ele e a mulher, que acham tudo “normal, bicho, nada de grilo nem de encucação, tá sabendo?” Não suporto conversar com eles. Embora sejam boas pessoas, não gosto mesmo é da mulher dele… não que eu não goste, é que me sinto encabulado na presença dela, pelo simples fato de ela querer dar pra mim! Eles, ela e o marido, acham que todos os problemas do mundo podem ser resolvidos com sexo, que se todos transassem sempre, não haveria guerras, mortes, violência… “isso tudo que acontece é pura frustração, pura falta de uma boa trepada”, dizem, e o filho da puta do meu patrão cismou que eu sou um cara problemático porque eu não tenho namorada nem amigos, e isso e aquilo… e por isso, aquela vaca da mulher dele quer dar pra mim, MAS EU NÃO QUERO, PORRA!

Era um belo dia para a maioria das pessoas, sexta-feira, dia de pagamento, tarde ensolarada, quase fim de expediente… para mim isso tudo não dizia muita coisa. Às sextas, todos se reuniam na lanchonete em frente ao escritório, homens, mulheres, chefes, subalternos, todo o pessoal, e não tinha segunda-feira que não chegasse pelo menos um contando sobre suas aventuras com uma fulana do escritório ou de algum escritório vizinho. Pois é, mas eu não gosto de sair! Eu gosto mesmo é de ir para casa… sempre vou pra casa. Moro só, num pequeno quarto alugado. Não tenho TV, rádio ou aparelho de som, sou de ler, não jogo cartas, não bebo, não fumo, não toco nenhum instrumento musical, não faço trabalhos manuais, não pratico esportes, não tenho hobbies… faço porra nenhuma, não gosto de nada, apenas chego em casa e fico sentado na minha única cadeira ou deitado na cama, esperando o dia seguinte, olhando pro armário, pro teto, pra parede oposta, pacientemente, sem pressa, querendo que o tempo pare, mas também torcendo para que tudo termine logo.

Naquela sexta minha rotina foi quebrada. Começou quando fui ao banheiro. Estava eu mijando quando de repente todos saíram e fiquei só. Desavisadamente mijando, e de repente aquela mão quente e macia e carinhosa e profissional até, agasalhou meu saco e meu pau. Era a mulher do chefe. Tentei fugir, mas numa incrível demonstração de força ela me jogou contra a parede, me atirou ao chão e colocou a boca lá, e passou a chupá-lo como se fosse um pirulito de morango, enfiando e tirando da boca num vai e vem frenético e ritmado, e me olhava nos olhos enquanto fazia isso, e soltava uns gemidos estranhos, meio anasalados devido ao meu membro em sua boca, e com as mãos alisava minhas coxas e apertava delicadamente minhas bolas, e mexia a cabeça, os cabelos, e eu não dava sinal de vida, durante uns cinco minutos, até que ela desistiu da chupação e ficou chocalhando ele, rapidamente, pra cima e pra baixo, mas ainda nada, até que ela desistiu e saiu resmungando algo que não compreendi! Fiquei lá, estatelado no chão, com meus sentimentos flácidos jogados de lado, meio atordoado e assustado com tudo aquilo, querendo entender o que não tinha que ser entendido, até que me recuperei, me vesti e fui pra casa.

Passei a noite perturbado, sem dormir, pensando, pensando, pensando que todos deviam estar na lanchonete, inclusive ela, com aquelas pernas maravilhosas de fora, agarrando no pau de todo mundo, contando com todos os detalhes o que havia acontecido, e todos rindo de mim, me julgando, me chamando de frouxo, de brocha, extirpando minha dignidade de homem conquistada com dificuldade ao longo dos meus trinta e poucos anos, construída com calma e ao mesmo tempo com impaciência, como uma estatueta de barro, uma parte por vez, uma parte sugerindo a outra, e a gente não vendo a hora de terminar e se orgulhar do árduo mas gratificante trabalho, mas que agora escapa das mãos criadoras e vem ao chão, transformando em milhares de pedaços a minha possibilidade, antes iminente, de um lugar comum numa sociedade exigente, onde não podemos ser mas nos fazemos ser, seres de plástico, máscaras de porcelanas, membros enrijecidos por próteses, papaverina e ópio, papaver somniferum, uma vontade de dormir para nunca mais acordar, e sonhar com flores de pedra em gramas de papel, e cavar este solo artificial, plantar minhas sementes estéreis, fincar minhas raízes já mortas para que não tenham a mínima possibilidade de gerarem novos frutos… mas por um devaneio qualquer, acabo encontrando um furtivo resquício de honra, eu, ex-futuro verme, preciso me honrar, preciso ficar por cima, arrumar uma boa estória, algo que não coloque em questão a minha vida, os meus hábitos, as namoradas que não conquistei, os amigos que nunca cativei, as transas que não tive, as orgias que não participei, os livros que não li, os programas que não assisti, as músicas que não ouvi, as noites que não saí, os jogos que não joguei, os assuntos que não conversei, não, não vou a julgamento, não quero, não devo, nada devo, e se alguém deve alguma coisa são eles, e de uma maneira ou de outra isso vai mudar.

Sábado à noite. Parei num bar agitado do centro da cidade, um desses inferninhos nas imediações da Praça da República e Arouche, decidido a sair com uma garota. Haviam muitas garotas por lá, e parecia que todas se conheciam, de alguma maneira, e todas trajavam roupas generosamente curtas. Escolhi minha princesa, ela era linda, longos cabelos castanhos meio cacheados, caídos pelas costas, rosto perfeito, pernas roliças e bunda arrebitada, peitos nem grandes nem pequenos, na medida exata do meu desejo. Sondei-a aproximadamente uns quarenta minutos, e embora muitos chegassem nela para conversar – e beijar e passar a mão na bunda, nas coxas, nos peitos – ela estava sozinha. Nem sequer percebeu minha presença, mas estava sozinha.

Encostei ao seu lado no balcão, joguei uma ou duas gracinhas que não pegaram, insisti duas ou três vezes e ela saiu do bar, me deixando a falar com o meu próprio copo. Fui atrás e mudei de assunto, numa conversa mais séria, ela me ignorou novamente. Insisti por mais uns dois quarteirões e nada. Resolvi mudar de tática e apelar para o seu lado humano, sentimental, e lhe dizer a verdade… contei-lhe sobre o que havia me acontecido no banheiro do escritório, e que eu precisava arrumar uma garota bem bacana pra mostrar pro pessoal, mas ela começou a rir de mim, freneticamente, debochando e me chamando disso e daquilo, e foi aí que eu percebi que ela era como todas as outras, como todos os outros, então me fiz de sério e difícil, mostrei-lhe quem eu realmente era e quem é que mandava, e aí acho que ela entendeu, não resistiu e logo estávamos no meu quarto!

Desde que se rendera não falava mais uma palavra, nem mesmo seu nome. Talvez eu tenha sido muito rude com ela, e nem meu pedido de desculpas mudou tal situação. “Passarei a chamá-la de Flávia, tudo bem?” Não respondeu, o que eu tomei por um sim. Fomos para cama e tirei as roupas de Flávia, que embora não resistisse continuava calada. Passei a beijá-la de corpo inteiro… eu não tinha pressa, por isso fiz tudo bem devagar, como deveria ser. Flávia continuava calada, nem um gemido sequer, um suspiro profundo, mesmo depois de eu tê-la penetrado. Talvez ela não estivesse sentindo prazer naquilo tudo, mas isso realmente não me importava, o que importava era o meu prazer. Terminamos. “Eu achei maravilhoso, Flávia, e você?” Nada. Dormimos.

O domingo passou rápido e quase desapercebido. Tomamos um banho – na verdade eu dei um banho em Flávia, pois nem banho ela queria tomar – e preparei uma gororoba. Flávia não comeu. Não a culpo, afinal meus dotes culinários são equivalentes à minha sociabilidade. Ficamos horas deitados, sem falar nada, sem praticamente se mexer… apenas deitados. Neste ponto, Flávia é exatamente como eu, adepta do silêncio e da imoção… “Acho que nos daremos bem, baby.” Chegou a noite e transamos de novo. Flávia estava um tanto fria, literalmente… mesmo por dentro. Quando terminamos, perguntei-lhe se não queria uma coberta para dormir, mas ela não respondeu… eu a cobri assim mesmo.

Segunda-feira de manhã deixei um bilhete para Flávia pois não queria acordá-la… disse que se ela quisesse trazer suas coisas para minha casa, estaria tudo bem. Em outras palavras, convidei-a para morar comigo.

Meu dia foi maravilhoso! Nem liguei para as pessoas trocando confidências ao me verem passar ,eu estava muito feliz para me preocupar com coisas menores. Quase no final da tarde, meu chefe veio conversar comigo a respeito do que todos estavam comentando, mas antes que ele começasse a falar, contei-lhe sobre Flávia… tudo, desde como eu a conhecera, no barzinho, a recusa inicial, o bate papo na rua, de como a convenci a me aceitar, a transa, o domingo inerte, tudo, sem esquecer nenhum detalhe! Ele ficou pálido, e começou a passar mal, dizendo que eu não deveria ter feito isso, e eu sem entender bem essa reação, só pude concluir que era inveja… só podia ser inveja de uma coisa sincera e bonita que aconteceu comigo, sem contar que Flávia era um exemplo de mulher, passiva, paciente, boa ouvinte, e fiel até, totalmente diferente de todas as outras.

Fim de expediente. Eu não via a hora de chegar em casa, e ao mesmo tempo tinha receio de que Flávia não estivesse mais lá, que ela não tivesse aceito meu convite. Começo a abrir a porta com o coração na mão, e antes mesmo de abrí-la totalmente, posso ver os pés descalços de Flávia na cama, dando a impressão de que sempre estiveram lá. Pulei sobre ela e dei-lhe um longo beijo de língua! Flávia estava com um cheiro esquisito, mas minha alegria e meu tesão eram tantos que nem liguei. Transamos durante horas, ela estava mais fria do que o dia anterior, tanto que meu pau quase congelou dentro dela! Dormimos. Acordei no dia seguinte com vontade de dar aquela trepada matinal, mas quando reparei Flávia ao meu lado, ela estava gelada, seu corpo totalmente duro e extremamente mau cheiroso, com uma tonalidade esverdeada e algumas lesões aparentes, as córneas opalescentes, tumefação e enfisemação, escoriações vermelho-escuras na região peritoneal masseteriana esquerda e direita e nos hipocôndrios, escoriações pardo-avermelhadas na face externa do braço direito, na altura do cotovelo, e os genitais externos com lesões violentas, a área profunda do couro cabeludo estava embebida em sangue seco, o músculo temporal direito também embebido em sangue seco e a abóbada craniana estava levemente esfacelada. “Isto dói muito mais em mim do que em você, baby, mas não podemos continuar… está tudo acabado entre nós.” Despachei Flávia, literalmente, e fui trabalhar, já pensando onde iria agitar no próximo final de semana.