Ascendo um cigarro. Abro uma cerveja. Ligo o microcomputador – ainda tem gente que chama isso de microcomputador? Carrego uma ou outro poema. Reviso um ou outro conto. Dou uma olhada nos vinte e nove capítulos, apenas nos nomes, do meu sofrido romance que não tenho coragem de continuar, leio algumas anotações feitas manualmente… “Onde estás, inspiração, que não me chegas?” Ascendo um cigarro. Dou uma tragada, ouço (sinto) a fumaça áspera descer arranhando (abrindo) as paredes da traquéia e invadindo os pulmões, dou um gole na cerveja, fecho os olhos e solto a fumaça prazerosa, num alívio quase divino, sexual, por onde aproveito para expelir um pouco de vida, já que possuo muita. Pouso o cigarro no cinzeiro cor de ashtray, e qual não foi minha surpresa ao ver um outro cigarro lá, abandonado, nas últimas embora aceso, com um olhar de rancor e indignação, dizendo “Bonito, hem, queria ver se eu fosse o último, se haveria tal desprezo, se você me abandonaria desse jeito, jogado às traças, reduzido a cinzas…” É claro que não. Se você fosse o último provavelmente eu te fumaria até o filtro, e sairia desesperado pela rua atrás de outro maço. “Para você é fácil, acabou é só comprar, sempre de maço cheio, mas, por acaso, já parou para pensar em mim? Já se preocupou com a minha mísera, pobre e infinitamente curta existência?” Sinceramente não. Mas afinal, do que adiantaria tal pensamento, já que é a sua própria natureza. “Mas se você é tão ‘humano’ como vive dizendo, como me acende e me queima, em troca de alguns minutos de prazer. Ao menos poderia me fumar por inteiro, que este abandono é pior que tudo…
Despertares repentinos… Insônias insossas… Atmosferas enfumaçadas… Tudo não passou de imaginação. Seria errado reduzir meus prazeres alcoólicos e nicotinosos, etílicos e alcatrônicos em simples diálogos existenciais? Ainda se ouvirá falar… E digo que não sei dizer nada por dizer, mas também não sou de escutar. Alusão sul-matogrossense com 15 anos de atraso.
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Dia seguinte (sábado), manhã: Alvoradas improvisadas. Madrugada fria se faz no calor do meu corpo 37o. Banho frio para lavar as peças íntimas e aproveitar a manhã paulistana. Café com torradas. Jornais desprezados anunciam notícias que sempre quis ler: Caiu a inflação, subiu o PIB, acabou o déficit público. Devem ter me entregado o jornal errado. Ascendo um Cigarro. Aahh! Mas não aquele cigarro de outrora, e sim um Cigarro consciente. Antes de acendê-Lo questionei, interroguei, conversei, e consegui convencê-Lo da morte iminente e já inevitável, e embora Ele tenha tentado me persuadir a não eliminá-Lo, eu fui mais convincente e fi-Lo aceitar a situação como sendo por uma causa maior, um ideal. Ainda concedi-Lhe um último pedido, e Ele, surpreendentemente pediu para que fosse fumado até o fim, sem compaixão, até que a brasa não tivesse mais terreno para avançar. Não sei se devia mas concedi. Podia ouvir seu pequenos talos não totalmente triturados e desconchavados estalarem, como num suplício de piedade, covarde e inconsciente, e pude sentir seu cheiro, ardendo em chamas inquisitórias… Cérebro para pulmão, cérebro para pulmão, Pulmão na escuta, over, Operação Queimada iniciada com sucesso, desligo over.
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Anotações do diário. Mesmo dia, antes do segundo cigarro: Observo o inimigo. Passaram-se 55’10’’ da 1a investida à plantação. Crescem as expectativas. Nosso(s) homem(ns) está(ão) cada vez mais impaciente(s). Sente-se que é dada a hora de novo ataque. Sorte a nossa o inimigo não ter uma estratégia de defesa. Pegamo-los desprevenidos e fizemos um refém. Após aplicação de métodos de tortura convencionais largamente utilizados na época militar, arrancamos algumas informações importantes, como em quantos eram, quem era o líder, qual sua estratégia de ataque, os objetivos etc. Descobrimos que são em muitos, não só aqui, mas no mundo todo, milhões, bilhões, trilhões quatriliões até, e que sua estratégia é lenta, porém eficiente, ao ponto de levar à morte todos que se envolvem com eles, embora as baixas sejam grandes, é irrelevante devido ao contingente total, e cada vez chegam mais, e mais, e mais, de diversas raças, e países. Não conseguimos arrancar de onde eles chegam, por onde, por que fronteira, como se infiltram, mas tudo indica ser uma operação muito bem organizada e, pasmem, com o consentimento e colaboração do governo. Depois de mais algumas torturas, aplicamos a punição: extermínio. Queima de arquivo. Não sei se é bonito ou não tal atitude, mas confesso que este método é muito gratificante, queimado vivo.
Meidei, meidei, informações importantes em nosso poder, aguarde relatório completo, over. Mais uma etapa concluída.
Mesmo dia, última hora: Nada se alterou no quadro da batalha. O inimigo se mostrou alvo fácil e vulnerável. Após 19 ataques bem sucedidos, encerramos nossas atividades por hoje. Parece que há apenas um sobrevivente no atual acampamento, mas sabemos que há um outro. Amanhã bem cedo retomaremos estratégia para extermínio total. Aguardamos ansiosos.
Durante a noite, algumas alucinações fizeram-se presentes. Dizem ser normal este tipo de coisa em época de guerra, muita tensão, risco de vida, mas ser queimado sistematicamente, não pareceu uma alucinação muito saudável. Malditos… Tudo culpa deles.
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Dia seguinte (domingo), manhã: Alvoradas boreais. Despertares quentes neste outono eterno. Façamo-nos dignos de nossa missão. Café puro, pedaço de queijo… É hora de enfrentar o inimigo. Percorro o vale que nos separa até o acampamento inimigo. Aproximação sorrateira. Havia um novo acampamento com outros vinte. Estavam todos dentro do quartel e novamente são pegos desprevenidos. Primeiro o solitário, depois os outros. Dessa vez não há torturas. Desta vez não há interrogatórios. Dessa vez não há piedade ou compaixão. Armado com meu lança-chamas que acende mais de três mil vezes vou logo entrando, adentrando, ardentrando, e as fumaças fazem o resto… Base para central, base para central, está me ouvindo, câmbio, Perfeitamente base, prossiga, câmbio, Outra investida no acampamento inimigo, mais uma baixa, câmbio, Bom trabalho base, câmbio final.
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Mesmo dia, fim de tarde: Saudosismos acomodam-se em nossos corações. Cerveja. Cervejas. Cervejass. Muitas cervejasss. Estímulo desnecessário, o final seria o mesmo previsto. Investida. São poucos agora. Tão poucos que caracteriza covardia, mas não há lugares para honras neste mundo de batalhas. Tudo torna-se um vício, plantando suas bases daninhas nos pontos mais estratégicos e vulneráveis que se possa imaginar, as inquietações multiplicam-se, a impaciência, as mãos vazias…
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Início de noite, serenos e garoas. Não suporto fazer campana. Munido de meu lança-chamas que na verdade acende três mil vezes ou mais, penetro no território inimigo. Ataque surpresa. Não há resistência. Apenas um último e heróico sobrevivente. Heróico. Heróico para quem? Amasso o acampamento e o faço refém. Mais tarde talvez me pergunte por que não optei pela eliminação imediata, nem mesmo eu saberia explicar. Uma sensação de vazio se apoderou da minha coragem pseudo-americana, uma falta. Eliminando-o, o que será de mim mais tarde… O que será de mim amanhã… E depois e depois e depois? O que me espera no mundo civilizado e sem batalhas, minha colocação social, minhas neuroses… Haverá uma Última Batalha?
Cérebro para todas as bases, cérebro para todas as bases, atenção: Missão cancelada, abortar missão, repito, abortar missão, ordens superiores, voltem imediatamente à central de controle, imediatamente, entendido? Câmbio final.
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Missão… Vida… Aborto. Voltar para onde, se não sei nem de onde vim. Para que se não sei por quê? Talvez nem ao menos tenha um passado fora dessa missão, impressão de já ter nascido aqui e aqui ter que morrer.
No chão da sala, ao lado do maço de cigarros amassado, do isqueiro, do cinzeiro transbordando de cinzas e com uma última bituca ainda queimando, jaz um corpo, o último, com uma arma na mão e um buraco na cabeça, sem cigarros.