“A justiça seletiva é a maior das injustiças.”
~anônimo

Na manhã em que José da Silva foi detido, ninguém sabia exatamente qual departamento havia emitido a ordem. O papel timbrado trazia um código alfanumérico incompreensível e um carimbo circular meio apagado, onde só se podia ler as letras “…partamen… Fed… de Inv…  ..av..-..at..”.
Os agentes que chegaram ao seu apartamento também não sabiam explicar com clareza. Vestiam ternos impecáveis e exibiam crachás que mudavam de cor dependendo do ângulo da luz. Quando questionados sobre sua origem, respondiam apenas: “Somos do Departamento”. José, certo de que nada devia a ninguém, tampouco a este tal Departamento, colaborou com os atentes e concordou em acompanhá-los. Não foi necessário o uso de algemas.

José havia sido um operário que ascendera a uma carreira importante na sociedade através de uma improvável série de eventos que os sociólogos ainda tentavam compreender. Seu desempenho havia sido marcado por programas sociais que desagradaram profundamente certas esferas do poder – esferas estas que se reuniam em salas sem janelas, em prédios sem endereço, em departamentos sem nome…

O juiz Orlando Marino, da pequena comarca de Vila dos Pinheiros, foi quem assinou a ordem de prisão. Curiosamente, ninguém conseguia encontrar Vila dos Pinheiros nos mapas oficiais, embora todos jurassem conhecer alguém que conhecia alguém que já havia estado lá. O promotor Rafael Dallavia, que conduziu o caso, tinha o peculiar hábito de aparecer simultaneamente em diferentes audiências, sempre vestindo o mesmo terno azul-marinho e carregando uma pasta preta que parecia maior por dentro do que por fora.

As acusações contra José eram ao mesmo tempo específicas demais e vagas demais. Falava-se de um apartamento que existia e não existia, de reformas que aconteceram e não aconteceram, de dinheiro que circulou e não circulou. As provas eram apresentadas em pen drives que invariavelmente se corrompiam antes de serem periciados, em documentos que se auto-destruíam ao contato das mãos, em depoimentos de testemunhas que posteriormente negavam ter testemunhado qualquer coisa.

No tribunal, os procedimentos seguiam uma lógica própria. As audiências começavam antes de serem marcadas, as sentenças eram proferidas em uma língua que precisava ser traduzida três vezes até fazer algum sentido, e os recursos eram arquivados em gavetas que levavam a outros arquivos, que levavam a outros tribunais, que levavam a outros departamentos. O advogado de José, Dr. Fernando Zanetti, passou meses tentando descobrir qual instância realmente julgava o caso, mas cada vez que pensava ter identificado o tribunal competente, recebia um ofício informando que a competência havia sido declinada para outro foro – um foro que funcionava em um prédio espelhado, sextavado por fora mas quadrado por dentro, onde todos os andares eram atendidos apenas por um elevador, que só dispunha de um botão – a letra A, de andar. Curiosamente, o elevador atendia a todos os andares, seguindo uma lógica própria e obscura.

Os jornalistas que tentavam cobrir o caso frequentemente se perdiam em corredores circulares, onde todas as portas levavam à mesma sala de espera, onde sempre havia uma secretária diferente dizendo que o responsável estava em reunião. As matérias que conseguiam publicar apareciam com parágrafos inteiros substituídos por sequências aparentemente aleatórias de números e letras, como um código inquebrável.

Durante seu período na prisão, José recebia visitas de agentes que se apresentavam como sendo de departamentos diferentes a cada vez. Faziam perguntas sobre eventos que supostamente não haviam acontecido e exigiam confissões sobre crimes que ainda não haviam sido tipificados. O processo contra ele crescia a cada dia, alimentado por uma burocracia que se multiplicava como um organismo vivo.

Anos depois, quando José foi finalmente solto por ordem de um juiz cujo nome ninguém conseguia pronunciar corretamente, descobriu-se que parte das provas contra ele havia sido fabricada por um grupo autodenominado “Força-Tarefa Anti-Corrupção do Departamento – Área Para-Federal de Assuntos Inventados”. Mas quando uma comissão parlamentar tentou investigar o grupo, encontrou apenas arquivos em branco em salas vazias de prédios abandonados.

O caso foi oficialmente encerrado por determinação de uma instância superior que, já sem causar espanto algum, não constava na hierarquia do Judiciário. O documento de arquivamento, assinado com tinta que tornava-se invisível ao contato com a luz do sol,, concluía apenas que “considerando a inexistência factual da existência dos fatos, e a existência formal da inexistência das provas, determina-se que nada aconteceu, embora tudo tenha sido rigorosamente documentado”.

Hoje, José vive em um apartamento térreo no décimo andar de um edifício de três andares. Às vezes, recebe intimações para comparecer a audiências que já aconteceram, ou ainda para apresentar defesa em processos que ainda não foram abertos. Dizem que jamais sairá da mira do Departamento, embora já questiona-se se o Departamento ainda existe, ou se algum dia existiu Por vias das dúvidas, ele ainda guarda todos esses papéis em uma pasta que nunca consegue encontrar.

Se o Departamento existe, ninguém sabe onde fica sua sede, ou quem são seus membros, mas sua presença pode ser sentida em carimbos, protocolos e ofícios que circulam pelos corredores do poder, lembrando a todos que a justiça, assim como a verdade, é apenas uma referência, uma perspectiva burocrática.