
“Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne;
e estes opõem-se um ao outro; para que não façais o que quereis”
Gálatas 5:17
Há que se dizer, antes de mais nada, que Maria não escolheu seu nome, como de resto ninguém escolhe, mas carregava-o como um fardo extra, pois quem dá a uma filha o mesmo nome da mãe de Jesus senão para impor-lhe uma vida de santidade forçada? Queria a mãe de Maria que ela ficasse virgem e que também fosse escolhida por Deus para conceber um filho por meio do Espírito Santo? Ou se contentaria com Maria tendo fé, humildade e obediência apenas? Pois assim cresceu Maria, entre terços e novenas, crucifixos nas paredes e santinhos na carteira, uma vida programada para a retidão que, já há algum tempo, começava a mostrar suas primeiras rachaduras.
O cheiro do café que o marido preparava na cozinha subia-lhe às narinas como um fedor implacável a lembrar a rotina de todas as manhãs. Os filhos, pequenos carrascos involuntários que a prendiam à vida que escolhera, ou que escolheram por ela, faziam seu habitual alarido na sala. E Maria pensava, embora não devesse pensar, que há certas prisões que construímos com nossas próprias mãos, tijolo por tijolo de moral e bons costumes, até nos vermos emparedados em vida, e então nos perguntamos se foi Deus quem quis assim ou se fomos nós mesmos que confundimos suas palavras e acabamos por fazer tudo ao contrário do que devíamos.
A semana desdobrou-se nas horas de Maria muito mais lentamente do que o normal; afinal, Maria não aparecera na igreja depois do ocorrido na reunião de segunda-feira sobre a reforma do orfanato. Na noite de sábado, quando Maria se preparava para dormir, pensou em surpreender o marido, desejosa como andava. Diante do espelho do banheiro, vestiu uma camisola sensual que deixava os seios salientes à mostra. Olhou-se por um instante, passando os dedos pelo crucifixo, presente de casamento que mais parecia uma coleira. Os dedos traidores deslizaram pelos seios, abaixo do crucifixo, como se fossem as mãos de outro, qualquer outro que não fosse o marido, e acariciaram os mamilos por alguns segundos, suavemente.
Ao ir para a cama, encontrou o marido já dormindo. É o sono dos justos, pensou aliviada. Ou dos ignorantes, retrucou. Às vezes dá na mesma. Então Maria rezou, ou tentou rezar, uma Ave Maria cheia de graça, mas de graça nada havia. Onde já se viu uma mulher que deseja o que não deve? Que sonha o que não pode? Que arde pelo que lhe é proibido? E aqui caberia perguntar quem determinou o que é proibido, se Deus ou os homens que dizem falar em seu nome? Maria largou a reza e passou a navegar pela internet em sites pornográficos, vendo corpos nus de homens desconhecidos, e não deixava de ser irônico que a mesma tecnologia que nos aproxima de Deus através de aplicativos de oração também nos aproxime do pecado. Não se pode nem dizer onde termina um e começa o outro. E gemia Maria em seus orgasmos silenciosos, ou nem tão silenciosos assim, mas o marido continuava dormindo, talvez acostumado demais com a presença da esposa para notar sua ausência, mesmo com ela ali ao lado.
Antes de adormecer, exausta de prazer e culpa, Maria pensou que talvez o verdadeiro pecado não fosse o desejo, mas a hipocrisia de fingir que não o sentimos, que talvez Deus nos tenha feito assim, imperfeitos e desejantes, não para nos torturar, mas para nos ensinar que a verdadeira santidade não está em não pecar, mas em aceitar nossa natureza pecadora – e se isso é verdade ou não, quem poderia dizer? Certamente não os padres em seus púlpitos dourados, nem as beatas com seus terços intermináveis. Nem mesmo Maria, que adormeceu sabendo que amanhã seria outro dia de luta entre o desejo e o dever, entre o que queremos e o que nos mandam querer, entre o céu que nos prometem e o inferno que nos acenam à frente. Maria adormeceu e fantasiou com quem finalmente se entregaria…
Na manhã seguinte, Maria preparou-se para ir à missa dominical, depois de quase uma semana ausente. Maria queria vestir o vestido vermelho, “cor do pecado”, dizem os que nunca pecaram. Mas afinal, não é na igreja onde os pecadores se encontram para se sentirem menos pecadores?