“Vigiem e orem para que não caiam em tentação.
O espírito está pronto, mas a carne é fraca”
Mateus 26:41
Maria acordou naquela manhã de domingo com o som do rádio do vizinho tocando “Construção”, de Chico Buarque, sobre um operário que se espatifa no concreto. Parecia que ela mesma se espatifara no concreto da rotina… mais um domingo igual a todos os outros. Na cozinha, o marido já passava o café, e o cheiro tomava quase toda a casa. “O cheiro do café é muito melhor do que o gosto”, pensou. Engoliu a dose necessária para tirar-lhe da boca o gosto da noite anterior, deu um beijo insignificante no rosto do marido e saiu, atrasada como sempre.
Maria estacionou o carro e caminhou em direção à igreja. Os saltos pontuavam a pressa no asfalto molhado – toc, toc, toc. Passou em frente ao cassino clandestino, que clandestino mesmo só é para a polícia, que faz vista grossa por comodidade e conveniência. Por um instante imaginou-se ganhando na roleta: vermelho 27!
Ao chegar à igreja, Maria sorriu para os fiéis ao seu redor, envergonhada pelo atraso. O padre Antônio falava de caridade enquanto Maria, distraída, ocupava-se de contar as pérolas no pescoço de dona Eulália. Pareciam as contas de um terço incompleto, pensou. Ao perceber que divagava ao ponto de transparecer no rosto e nos olhos aquela expressão abobalhada, abriu a Bíblia rápida e aleatoriamente… Mateus 6:21, “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.”
O coração de Maria sempre estivera na igreja. Já estivera também no marido, mas há tempos que o tesouro perdera o encanto. Estava nos filhos, mais por instinto do que por amor, mas também estava, ultimamente, naquele vestido, também vermelho, como o 27 da roleta, na vitrine da lojinha da esquina, onde passava a caminho da igreja.
Retornando para casa, o domingo de Maria passou como uma procissão de momentos desperdiçados: o marido no sofá, as crianças no videogame, ela na correria bem conhecida do fogão para a pia, do tanque para o varal, com a vassoura nos intervalos. E os pensamentos no vestido vermelho. Tentou murmurar uma oração que, ao mesmo tempo que pedia perdão, também pedia o número da sorte para o próximo jogo do bicho… “Quem sabe ganho e deixo tudo isso para trás”, pensou, recriminando-se imediatamente.
De noite, na cama, Maria refletia sobre seu dia quando ouviu uma discussão no apartamento ao lado. Reconheceu a voz embriagada do vizinho, que gritava com alguém ao telefone. Suas mãos escorregaram por entre as pernas e Maria se tocou, com força e vontade, contorcendo-se em desejos ditos mundanos. Ultimamente Maria imaginava-se apanhando do vizinho, tomando tapas violentos na cara, enquanto chupava-lhe o membro enrijecido. Maria gozou intensamente, com o marido ressonando ao seu lado.
Ao adormecer, exausta, os sonhos de Maria vieram em vermelho: anjos vestidos de demônio, demônios vestidos de padre, padres vestidos de vermelho, com vestidos ao invés de batinas, os membros protuberantes, todos dançando uma ciranda infernal, na voz chinfrim de Chico, que cantava sobre o operário que amou daquela vez como se fosse a última.
Ao acordar, viu uma mensagem do padre Antônio, enviada na noite passada: “Reunião amanhã para discutir a reforma do orfanato. Sua presença é fundamental.” Maria passou a mão nas economias que guardava dentro de um pote de bolachas artesanais “Royal Delft”, em porcelana branca com o desenho de um moinho de vento holandês em azul, e saiu carregando sua cruz particular, já que não era só o sino da igreja que chamava; o vestido vermelho também tinha seu próprio sino, seu próprio canto de sereia, e era essa a tentação de Maria: o dinheiro que vinha economizando há meses, pouco a pouco que é como podia, com a intenção de doar à igreja, e assim ajudar nas reformas do orfanato, era também a conta exata do vestido vermelho, que ultimamente vinha perturbando-lhe a alma!
Maria hesitou por um momento entre a porta da igreja e a porta da loja. “Deus há de me perdoar”, pensou. Determinada, entrou na igreja, dirigiu-se ao padre Antônio e cochichou-lhe algo ao pé do ouvido. O padre Antônio soltou um suspiro buliçoso, enquanto Maria caminhava pelo caminho da volta, firme em cada passo dessa sua jornada eternamente dividida, equilibrista na corda bamba entre o sagrado e o profano, a virtude e o pecado, a fé e a dúvida. Entrou na loja, colocou o envelope com as economias sobre o balcão. Abraçou o vestido vermelho. Parecia cheirá-lo, afagá-lo. Maria vestiu o vestido vermelho, enquanto o vestido vermelho a vestia de pecado e de redenção.