ou “Em Legítima Defesa”

Monstros de verdade não se escondem debaixo da cama…
~anônimo

Antônio acordou com o rádio anunciando coisa ruim, pra variar. Apagão. Falta de energia. Olhou para as carnes penduradas, aquela quantidade obscena de proteína morta que precisava manter refrigerada. Sorriu. Era a desculpa que precisava. “Reajuste preventivo”, digitou no computador enquanto lambia os lábios. Os números dançavam na tela como formigas embriagadas de tanto nectar. Quinze por cento na picanha. Vinte no filé. “Por que não?”

Teresa, da padaria que ostentava o lema “Honestidade em primeiro lugar”, discordou pela manhã. “Não vou aumentar”, afirmou com convicção. À tarde, após comprar o frango do Antônio, retornou indignada. No dia seguinte, a coxinha tinha engordado no preço, como uma lombriga bem alimentada.

Já no mercadinho do José, que era um antro de agiotagem “legalizada”, enquanto as autoridades faziam vistas grossas para a jogatina, agora com a notícia do apagão, eram preços novos todos os dias. “É provisório”, explicava para a esposa enquanto contava as notas no caixa. “Com três filhos na escola particular e uma esposa que engole remédios como balas, melhor me precaver”, pensou.

Regina, a farmacêutica, não ficava para trás. É a primeira a chorar, mas também a primeira a enfiar a faca. “Pelos refrigeradores”, dizia, como se aquelas caixas de metal fossem santuários. Depois veio com história de que o almoço ficara mais caro… Todos tinham uma narrativa pronta, uma justificativa na ponta da língua.

O posto de gasolina então, era um caso de polícia. O dono, sempre sorridente, reajustava o preço três vezes por dia. “O mercado do petróleo é muito volátil”, falava, com uma cara lavada de cinismo, enquanto os números rodavam no painel, como um caça-níqueis viciado.

Marta, a costureira, que parecia diferente, também aumentou os preços “só um pouquinho”. E dizia isso como quem pedisse desculpas. Mas quando recebia o pagamento, o sorriso era o mesmo dos outros; o mesmo brilho nos olhos…

Alberto, um professor medíocre que se achava um intelectual, vivia reclamando dos preços, mas batia ponto todas as noites no boteco. Com o pronunciamento, passou a cobrar o dobro nas aulas particulares. “É pela família”, dizia a si mesmo, enquanto se afogava em álcool.

Passaram duas semana e o apagão virou piada. Engano. Nunca existiu. Mas os preços? Ah… esses permaneceram tão reais quanto o sol de todo dia. Ninguém recuou. Ninguém voltou atrás.

João, o mendigo, era o único que ria de verdade. Sentado na praça como um filósofo esquecido, um profeta bêbado, acompanhava os acontecimentos de camarote. “A ganância”, ele cuspia as palavras junto com o bafo de cachaça, “é igual câncer. Quando você percebe, já tomou conta de tudo.”

Na Vila das Pedras Imaculadas, o nome era a única coisa limpa que restava. O resto era podre. As pessoas se conheciam há anos, mas já não reconheciam suas próprias reflexões… Bastou um pequeno pretexto para revelarem seu verdadeiro caráter.