AI generated image ~ https://www.freepik.com
Havia essa vila à beira-mar, onde o tempo se comportava como um gato preguiçoso — às vezes andando para trás, às vezes dormindo por décadas. Naquele lugar, os relógios não marcavam horas, mas sim estados de espírito das pessoas. O de Pedro, herança de sua falecida esposa, tinha desenvolvido o peculiar hábito de suspirar melancolicamente a cada pôr do sol. Diziam as más línguas que o relógio havia absorvido a alma da antiga dona, mas Pedro sabia que era apenas a maresia corroendo as engrenagens da saudade.

As ondas do mar, que para os outros habitantes soavam como simples movimentos aquáticos, para Pedro eram um código morse cósmico. Cada quebrar de onda na areia trazia consigo fragmentos de conversas entre estrelas distantes, fofocas de baleias centenárias e canções de sereias aposentadas que haviam penhorado suas caudas há muito – uma forma fácil e rápida de meter a mão numa grana.

Quando Pedro anunciou sua decisão de buscar os segredos do mar, o prefeito — que ninguém via há tanto tempo que sua existência havia virado tema de debate filosófico — supostamente enviou um telegrama oficial declarando que “a loucura de Pedro seria incorporada ao patrimônio cultural imaterial da vila”. Os moradores comemoraram a notícia com um festival de três dias, embora ninguém pudesse confirmar se o telegrama realmente existia.

O barco que Pedro comprou tinha personalidade própria: rangia em português arcaico e, ocasionalmente, citava trechos de poemas épicos que ninguém conhecia. Os equipamentos de mergulho, por sua vez, eram tão antigos que lembravam artefatos de uma civilização atlante, possivelmente adquiridos em algum brechó de esportes radicais.

No mar, Pedro descobriu que o tempo não seguia uma linha reta, mas sim uma valsa irregular. Às vezes, ele mergulhava na terça-feira e emergia com a impressão de estar no século passado; outras vezes, nadava por cinco minutos e sentia-se três meses mais velho. Os peixes o observavam com um ar curioso, sentindo-se privilegiados por testemunharem natureza tão particular e controversa.

O brilho que o atraiu nas profundezas não era um simples reflexo: era uma congregação de memórias cristalizadas, uma assembleia de momentos perdidos que o oceano colecionava como um arquivista obsessivo. Quando Pedro esticou a mão para tocá-lo, não foi um simples acidente que o atingiu — foi o próprio mar, cobrando seu preço em carne e osso.

Ao acordar na vila, Pedro descobriu que seus dedos perdidos haviam se transformado em banquete para barracudas e afins, e não iriam mais registrar histórias que ainda não haviam acontecido. O anel, incrustado no único dedo que lhe restava, tinha o peculiar hábito de olhá-lo diretamente nos olhos, como se buscando uma conexão espiritual.

Os habitantes da vila, que antes o consideravam louco, agora o consultavam para descobrir onde haviam deixado objetos que ainda não haviam comprado. Como um guru lunático, amaldiçoado e abençoado, nas noites de lua cheia, Pedro senta-se na praia, seu dedo anelado brilhando com uma luz que faz as estrelas parecerem mera purpurina. E se alguém prestar atenção, poderá ouvir o mar sussurrando segredos que só fazem sentido às avessas, enquanto o velho relógio de sua esposa, agora pendurado no horizonte como uma segunda lua, continua marcando as horas que passam em outro lugar.