Caim e Abel são gêmeos perfeitos. Mais-que-perfeitos, eu diria, se eu pudesse usar de analogias gramaticais. Meta-gêmeos. Irmãos siameses, unidos pela ponta dos dedos mindinhos. Foram separados quinze minutos após o parto, numa operação tão perfeita que até mesmo as falanges decepadas tinham uma precisão simétrica que impressionava a todos, e não permitia a diferenciação entre os dois. Mesmo após a rotura mantiveram a unidade física e espiritual de tal modo que nem a mãe notava a diferença.
Conheci-os numa de minhas viagens pelo sertão goiano. Eram anapolinos. Faziam parte das centenas de açougueiros desempregados pela falência de frigoríficos em Anápolis, Goiás, que migram para a Irlanda e lá encontram trabalho. O fenômeno causou duas grandes mudanças em ambos os países: Anápolis ficou conhecida como “O Paraíso Irlandês”, enquanto Gort, a principal cidade de destino desses trabalhadores, ficou conhecida como “Little Brazil”. Mas isso é história. Caim e Abel passaram bom tempo na Irlanda, fizeram algum dinheiro – o que sobrava do sustento das duas famílias: a que deixaram em Anápolis e a nova que formaram em Gort – e se mandaram de volta pra Goiás. Trouxeram na bagagem muita experiéncia, boa e ruim.
A vida na Iranda fez de Caim e Abel duas pessoas diferentes. Este doce, bondoso, uma pessoa que se pode contar para tudo mesmo. Dizem qie herdou isso com os padres irlandeses, pois para aprender o inglês ia às missa, e depois das missa se reunia com os padres para conversar… Aquele, Caim, também sentia dificuldade com as línguas, mas foi buscar ajuda noutros sítios, com mulheres da noite, e com aqueles que cuidam das mulheres da noite. E se envolveu com o estilo de vida daqueles que vivem da noite…
Caim é açougueiro. Mata, desossa e retalha porcos e bois. Viu tanto sangue em sua frente, abriu tanto bucho, limpou tanto intestino, tirou tanta pele, que rasgar a carne para ele ficou banal. Parecia mesmo gostar disso… Ora, bem-aventurado o homem que desfruta de seu ganha-pão! E o defende… com unhas e dentes!
Contam que certa noite, quando os irmão terminavam uma seroada no frigorífico e já baixavam as portas do açougue, ouviram um barulho que vinha dos fundos. Encafifado, Caim quis verificar do que se tratava, sob os pedidos de Abel para que deixasse pra lá e que fossem embora. Caim entrou para ver o que era enquanto Abel esperou do lado de fora. Quinze minutos depois, Caim volta com um coração humano nas mãos, a roupa e os braços todos ensangüentados, e com um olhar – ah, aquele olhar alucinado – um olhar alucinado estampado no rosto… um olhar que metia medo em Abel, mas que ele conhecia bem, pois Caim já o tinha desde pequeno, e só vinha se intensificando…
Depois disso vieram atrás de Caim, pelo o que havia feito. Eram uns sete ou oito, supostamente parentes e amigos daquele que perdera o coração para Caim. O mais calmo de todos perguntou “qual de vocês arrancou o coração do meu irmão?”, Caim olhou para Abel, que estava paralisado. “Foi você?”, olhando para Abel, que continuava paralisado, como uma estátua, e nada respondeu. “Foi ele?”, perguntou para Caim, apontando para Abel. Caim olhou para Abel, imóvel… Visivelmente irritado, perguntou novamente “Foi ele ou não foi, porra?”, e Caim, intercalando o olhar entre o inquisidor e Abel, também não falava nada, e o cara já puto olhando para Caim gritou “FOI ELE OU NÃO FOI, PORRA?!?, RESPONDE OU EU TE QUEIMO!!!”, e Caim, quase cagado, mas ainda apto a se mexer, fechou e abriu as pálbebras, sutilmente, e os sete ou oito abriram fogo em Abel.
Abel matava, desossava e retalhava porcos e bois. Viu tanto sangue em sua frente, abriu tanto bucho, limpou tanto intestino, tirou tanta pele, que a vida, em qualquer estado ou manifestação, se tornou algo sagrado para ele. Tanto, que seria capaz de abrir mão da sua própria em pról de uma alheia.
Caim e Abel eram iguais, perfeitamente iguais… não fosse pelo olhar…