“Querido Diário… mas que porra é essa?!? Querido? Que coisa mais infantil! Não, não posso começar assim…” e rabisca a linha. Gosta de escrever no papel com caneta-tinteiro, como antigamente. Tinta preta, ponta grossa – nem que tenha que rabiscar quando borra ou quando erra, e passar a limpo depois. Ele parte para a próxima linha: “Caro Diário…” e pára um instante, mordendo os lábios… “Não, também não ficou bom…” e rabisca novamente. Terceira linha: “Meu Diário…” rabisca. “Diário…” rabisca. “Dario… Mas que merda!” exclama irritado. Arranca a folha do bloco de notas, amassa veementemente e arremessa no cesto de lixo. Erra o cesto. Pragueja… Próxima folha: “A quem interessar possa… Que é isso Dario? Parece testamento! Ou pior, nota suicida! A quem interessar possa… o troço só interessa a ti, estúpido! Comece do jeito certo, Dario!” Arranca a folha – agora está determinado: “Dario, neste ano que hoje começa, tens que fazer cumprir as promessas que te fizeres… hum… na segunda pessoa fica meio formal mas também soa mais sério! … TODAS elas, e aproveite para fazer as promessas em teus momentos de embriaguez, que é quando ficas mais sensível contigo e com os que te rodeiam!” Dario larga a caneta assustado: “Caramba! Eu escrevi isso?”, e relê a última linha, confuso. Rabisca a parte que lhe parece involuntária e continua: “… E sendo assim, prometo-me ser uma pessoa melhor para todos os que me rodeiam… não gosto desse ‘para todos os que me rodeiam’, é muito genérico” e rabisca, e depois do ‘prometo-me ser uma pessoa melhor’ escreve em letras garrafais: “… PARA TODO MUNDO SIM, E NÃO SÓ PARA AQUELES QUE ME RODEIAM!”
O susto agora é maior. Tanto que derruba o copo de whisky e o tinteiro sobre o bloco de notas. Rapidamente ergue o bloco, tentando salvar o que resta de legível em suas anotações, mas ao chacoalhar o bloco, a mistura de whisky e tinta escorrem ao longo da folha, desenhando formas que lhe pareceram letras, e depois palavras, e incrédulo, Dario lê o resultado:
“Dario, seu merda! Para de frescura com essa porra de diário! Diário, Dario, é o caralho! Você precisa sim é de vergonha na cara! Tira essa máscara, Dario! Mostra quem você realmente é! Engole esse sorriso bobo que você se esforça em manter nessa tua cara e se mostra por inteiro, Dario, que embora você não saiba, melancolia também é um pecado capital, segundo Evágrio Pôntico, grande pensador Romano que primeiro escreveu sobre as doenças da alma. E não se iluda pensando que suas virtudes – o que você considera virtude – vão te aliviar a pena, não… Castidade e Temperança no teu caso não são virtudes, mas falta de opção. Tua humildade é pura submissão, e tua Generosidade e Caridade são frutos do teu egoísmo desmedido, já que é para o seu próprio bem-estar. O que considera Diligência não passa de uma tentativa desesperada de não pôr fim a esta tua vida de merda, pois bem sabe você que o suicídio não faz parte da lista dos sete pecados capitais justamente por não haver perdão para ele, e como você ainda é um religioso – o que eu acho a maior das tuas besteiras – mesmo cheio de dúvidas não se atreveria a arriscar, medroso como só.
“E me diga uma coisa Dario, nós dois sabemos que no fundo você não acredita em porra nenhuma! Então por que essa hipocrisia toda? A vida já não te parece muito curta Dario, pra se viver numa realidade que não é a tua própria? Acorda Dario, você ainda daria um bom cara, só precisaria ser honesto com você mesmo e com os outros – todos os outros Dario. Os mesmos que você julga a cada momento, incansavelmente, achando que levam uma vidinha medíocre – quem é você Dario? Qual foi a última vez que alguém tocou em você, digo, voluntariamente? Esbarrões na rua ou em lotações e apertos de mãos esporádicos e indiferentes não contam. E se falarmos de sua intimidade Dario? Quando foi a última vez que dividiu sua intimidade com alguém? Tire este dia para pensar nisso e em todas as pequenas coisas que não tolera nos outros mas você mesmo as faz, conscientemente até.
“Você não é melhor que ninguém Dario. Tire o dia para pensar nisso. Tire o ano para pensar nisso.”
Atordoado e sem palavras, Dario deixa-se cair na cadeira de seu escritório. Olha para o papel, olha para o tinteiro, olha para o copo de whisky derramado, as duas garrafas de whisky sobre a mesa – uma vazia e outra restando pouco mais de um quarto. Vai até a vitrola, folheia os discos, todos de porcelana, 78 rotações, e dentre Varèses, Cages, Stravinskys e Stockhausens, seleciona um raríssimo Olivier Messiaen, Variations Écossaises, de 1928, obra dada como perdida por historiadores.
Ao som dos primeiros acordes dissonantes do orgão de Messiaen, Dario abre a janela do escritório – quarto andar – em busca de ar. O que encontra é uma noite torrencialmente chuvosa. Olha para o céu sem lua, olha para o chão sem mar… Pensa em Ismália, sua paixão platônica. Pensa em como é irônica a literatura, coisa que nunca se dedicara com a devida seriedade… e em meio a tantas heresias, entrega-se embevecido ao chão que vem ao seu encontro.