Dizem que futebol, religião e mulher não se discute. Para Eugênio tais assuntos eram balela. Ele não se atinha a eles. Para ele, política, arte e sociedade eram coisas que sim, se discutia. Muito, e a fundo. Doesse a quem doesse.
Cabe um parênteses aqui: por ser um fenômeno antropológico e, por assim dizer, social, religião acabava entrando, vez ou outra, na pauta de discussão de Eugênio. Agnóstico que era, encurralava seus opositores – sim, opositores, e não meros debatedores! É como prega aquele outro dito popular, “perde-se o amigo mas não perde-se a piada”. Eugênio rezava, “perde-se um amigo mas não se perde uma boa discussão”!
Joaquim Eugênio D’Albuquerque Moraes. Por vezes rubricava JEDAM em grupos de discussão. Debatedor feroz, conhecido como “Língua-Peixeira”, deixou muita mágoa em ex-amigos, mas se orgulhava dos debates vencidos, e dos adversários massacrados pela retórica precisa e inquestionável que tinha. Sem dúvida, para discutir com Eugênio precisava não só de muita cultura – geral e específica -, mas também de muita informação e boa retórica!
E assim era Eugênio, afiado, arguto, mordaz, pungente, lancinante, retumbante! E parecia não se importar se os amigos lhe virassem as costas ofendidos por uma discussão. Dizia, “sinto muito que levaram para o lado pessoal”, e desconversava. E era o que genuinamente sentia Eugênio: uma discussão não lhe tinha caráter pessoal, mas sim intelectual. Perder uma discussão era admitir ser intelectualmente inferior – e apenas no assunto em questão.
Joaquim Eugênio D’Albuquerque Moraes sempre lidou bem com estas mágoas e perdas, até o dia em que magoou Nicanor… Nicanor, seu melhor amigo! Na hora não percebeu. Precisou algum tempo para dar-se conta do impacto de ter magoado Nicanor, e consequentemente, perder sua amizade.
A coisa foi gradual… Começou no dia seguinte ao acontecido, quando ao despertar, Eugênio sentira que seria um mal dia; daqueles em que não se deveria sair da cama, que deveria ser simplesmente emendado à noite seguinte, até a próxima manhã. Sempre lhe vinha à memória os bons momentos com Nicanor. Ano após ano esses momentos lhe acompanhavam, com a dose certa de nostalgia e arrependimento, até que Eugênio passou a se esquecer de como era Nicanor. Primeiro os momentos foram se esvaindo. Depois o jeito de Nicanor lhe fugia, até que passou a não lembrar mais do rosto de Nicanor. Isso se deu no mesmo dia em que, ao acordar e olhar-se no espelho, Eugênio percebeu que sua pele, antes sem manchas, manchava-se, e começava a dar-se… e dar-se, como se dá algo que sobra, para que não estrague. Era como se sobrasse coisa por fora de Eugênio, quando realmente lhe faltava coisa por dentro… era como se lhe vazasse o ser do corpo! Toda a experiência, toda a sabedoria – e com elas toda a humanidade, compaixão e bondade praticadas por tanto tempo – agora se esvaiam, e perdiam o seu vigor. O sumo já lhe faltava, e o que sobrava era o gosto amargo do bagaço: o tal do rancor!
Agora leia: meu amigo Nicanor