4.
Como toda boa cidadezinha, Liúnas do Norte também tem uma igrejinha, muito bem construída, por dentro e por fora, e os vinte bancos onde cabem pouco mais de seis pessoas cada são suficientes para acomodar os fiéis, exceto em dias de missa, aos domingos, que muita gente acaba ficando em pé. Por dentro as paredes pintadas em tom de azul claro, com uma bela imagem desenhada no teto, uma estátua de Jesus Cristo crucificado, em tamanho natural — motivo de fervorosas orações — e mais algumas estatuetas de outros santos e santas, em menor tamanho e importância. Na entrada, como não poderia faltar, o reservatório de água benta para que os fiéis se abençoem tanto no entrar como no sair da casa do Senhor. Há também o sino, orgulho dos liunenses, que ajuda em muito para que os fiéis não esqueçam da missa, como se houvesse muitas outras coisas para se fazer aos domingos, e o padre Frido, que na verdade se chama Fritz Döier, e que, ainda pela verdade, não é padre coisa nenhuma, mas isso ninguém pode dizer, que tamanha devoção tomou conta de seu coração que até Deus duvida que este homem não seja nas ciências e nas artes de padre estudado e iniciado. Fritz chegou aqui fugido de seu país, onde era caçado por crime de sonegação, prostituição, jogo e algumas mortes, e ainda deve ser, que esses alemães, dizem, são demais cruéis, e essas coisas naquela época poderiam levar um homem à forca, se é que ainda não levam. Quando chegou aqui, sabendo que poderiam vir atrás dele, Fritz fez-se de padre, construiu uma igreja com a ajuda dos poucos fiéis que conquistou com algumas histórias sobre Deus e Diabo que aliás não se pode achar em livro algum, já que eram fruto da imaginação um tanto atormentada de Fritz. Vamos ver como era uma delas, que vale à pena, só uma, que com o tempo vê-se mais.Contou Fritz, quero dizer Frido, já que foi com esse nome que se apresentou, que Deus tinha um anjo que era o Seu preferido, mas que um dia esse anjo achou que não precisava mais obedecer as ordens de Deus, que ele era capaz de fazer tudo que Deus fazia, e pensando assim, rebelou-se contra o Criador, juntou mais alguns insatisfeitos e armou um verdadeiro motim. Deus, ao invés de sumir com o rebelde num simples estalar de dedos, que é o que se esperava, preferiu ser benevolente, afinal, Seus outros anjos poderiam se intimidar com tal demonstração de poder absoluto sobre suas existências, e acabou por expulsá-lo de Seu reino, que fosse ele cuidar de construir o seu próprio, já que nesse cargo de Deus não havia lugar para dois. Assim, vieram a existir o inferno e o Diabo. Vendo-se o Diabo dono de um reino só dele, trabalhou muito e arduamente, construindo e plantando tudo às avessas de Deus, que acabava resultando no mal, nas trevas, já que o bem e a luz plantava Deus, que não queria concorrência. E foi o Diabo plantando o mal pelo mundo, sem descanso, sem medir esforços, e como resultado de tão devotado trabalho, viu-se o mal infestado no coração dos homens, de quase todos, e foi aí que Deus, vendo que estava a perder terreno, tratou de convocar um encontro com o Seu rival, nem no inferno nem no paraíso, mas num lugar neutro, no meio do deserto, e quem por ali andava naquele dia, jura ter visto duma nuvem descer uma escada dourada, com anjos desenrolando um tapete azul-divino, e um ser grande e brilhante, com longas barbas e cabelos compridos descer por essa escada e baixar oásis, e o rosto ninguém pôde ver, mas viram ainda as areias ficarem vermelhas e esquentarem ainda mais, e ao lado desse oásis surgir duma bola de fogo um ser também grande, mas com longos chifres e um rabo saído do final da espinha, e depois viram eles se abraçarem antes de sumirem no nada, mas é bom sabermos que na verdade não sumiram, apenas se fizeram invisíveis para terem mais privacidade, que esses encontros entre Deus e o Diabo não podem ser presenciados por mortais. Depois de assegurada suas privacidades, Deus parabenizou o Diabo pelo belo trabalho, belo no sentido do esforço, da dedicação e da determinação, ao qual o Diabo agradeceu dizendo que devia a Ele, Deus, tudo que sabia. Conversou-se mais uma ou duas coisinhas, Deus perguntou como ia o inferno, o Diabo disse que ia bem, muito trabalho e coisa e tal, Deus disse-lhe que não é fácil cuidar de um mundo todo, aí o Diabo perguntou sobre o paraíso, Deus respondeu que ia levando como podia, até que tocaram no assunto principal daquele encontro, que era discutir que destino teria o mundo, e reclamando maior números de fiéis, Deus contou ao Diabo da Sua idéia de por no mundo um filho Seu, para levar a Sua palavra em peregrinações, para fazer com que os homens se redimissem dos seus pecados, e que para isso ter sentido, ele deveria morrer na cruz, deveria sofrer as conseqüências na própria carne, para que os homens se convencessem do poder das decisões divinas, e o Diabo duvidou, dizendo que sendo Ele Deus, do bem, não permitiria que um filho Seu morresse na cruz, honrado ou não, que isto seria apelação, que deveria haver outro jeito, menos doloroso para todos, mas Deus, que já tinha tudo planejado, com um gesto das mãos fez do ar uma imagem do futuro, e o Diabo viu, espantado, quanto sangue se derramaria, quantas pessoas sofreriam e quantos morreriam em Seu nome, para que aumentasse Seu reino, e por fim, viu quem seria Jesus Cristo, rapaz magro, rosto sofrido, bondoso e inseguro, que na verdade só queria ter uma vida normal, casar e ter filhos, trabalhar, ser feliz, mas não, tinha que levar a palavra do Pai, e acabou pregado numa cruz, com pregos assim largos em sua carne viva, anjos e umas poucas pessoas a chorar sua morte, como se imaginando se tudo isso teria valido a pena, e vendo isso o Diabo se encheu de compaixão e disse, Se for assim, renuncio ao meu reino e volto Contigo aos céus, desfaço tudo o que fiz, ilumino o que escureci, abençôo o que amaldiçoei, e tudo será como antes, só que agora, ao invés de ser eu o Teu primeiro anjo, serei o último, não me importo, e tudo será como antigamente, antes de que eu Te traísse, e não será necessário tanto sofrimento, tanta desgraça em Teu nome, e Deus, virando-se para o Diabo diz, Muito obrigado, Lúcifer, que este era o nome dele enquanto anjo e continuou sendo, Mas de que serviria o bem sem o mal, e o resto se fez como a gente conhece.
E o povo, simples, não se achando digno de julgar se era verdade ou não as histórias do padre Frido, acreditava, pois no mais, já estavam contadas mesmo.
Mas nem só de histórias fantásticas, críveis ou não, era feito Fritz, mas de um bom coração também, sempre disposto a ouvir seus fiéis com uma calma e uma paciência só dele, e quando terminava de ouvir se dava a falar, uma coisa mais bonita que a outra, reconfortante, cheia de esperança, coisas que fazem a gente pensar em nossas vidas, em nosso mundo, na nossa condição de ser humano, filhos de um mesmo Pai, e conhecendo Frido difícil é acreditar que tenha se envolvido com estas coisas de prostituição, jogo e morte. Coisas da vida, e ninguém será capaz de desvendar tamanhos mistérios. Mas o que nos importa é que padre Frido, como ficou aqui conhecido, é uma pessoa boa, que construiu uma igreja que o lugar carecia, e nela passou a ensinar o catecismo, que nada mais é do que os ensinamentos de Deus e da igreja, que ele lê de um livro escrito numas letras que ninguém entende, só ele, e passa para as letras que nós entendemos, embora só alguns, já que existem aqueles que não tiveram a sorte de ter alguém pra ensinar a ler e a escrever, que por aqui, essas coisas de ler e escrever não se aprende em escolas, aliás, melhor agora antes que tarde, não há escolas em Liúnas, e mesmo que tivesse, não teria quem ensinasse, nem muito o que ensinar, além de não ter quem quisesse ou pudesse aprender. Mas tudo ao seu tempo. Quem sabe essas coisas de alfabetização também aqui venha a ter.