14.

 
Interessante os destinos, que não escolhem horas nem lugares para as coisas. Não se conhecendo Pedro Tristão e João Simão, nem um nem outro, embora morando na mesma vila, já se viram e sabem um da vida do outro, como todos sabem da vida de todo mundo, mas ninguém liga. Sabe Pedro da história de João Simão, as mesmas coisas que todos, que é filho sem pai de criação e já sem mãe, que tem uma vida diferente daquela que se acha certa, que é a do trabalho, que mora duas ruas atrás da igreja, perto de sua casa, e que toca cocho. Só isso interessa e já é o suficiente para Pedro Tristão, que nunca careceu de conversar com João. Sabe João Simão as mesmas histórias que todos sobre Pedro. Sabe que Pedro Tristão é rapaz bem cuidado, que teve mãe, hoje já morta, que por falta de um pai teve dois, um de coração e nascença e outro só de coração, que por muito tempo desfrutou o prazer e os cuidados dos dois pais e da mãe, mas quando um dos pais se foi, o só de coração, já logo se foram o outro e a mãe, e hoje está só, como ele. Sabe também que ele fabrica cochos, que aprendeu com Antônio Constante, que talvez tenha sido o melhor fabricante de cochos do mundo — se é que se fabrica cochos em outros lugares que não por aqui —, que mora duas ruas atrás da igreja, perto dele, e que tem o hábito de trabalhar todos os dias, exceto domingos de manhã, que vai à missa, pois já se viram lá. João Simão, como bom trovador, já tentou jogar conversa com Pedro, mas este, recatado e tímido, não lhe deu muito ouvido, e não foi por maldade não, foi por ter muita coisa pra fazer mesmo, e não ter tempo de parar.

Pedro Tristão e João Simão se encontram nessa noite, na vila, quando ambos voltavam do acampamento de Marthe, como se possível fosse ambos terem feito o que fizeram ao mesmo tempo. Que João Simão vive andando por aí, isso todos sabem e não irão estranhar, mas Pedro Tristão caminhando a estas horas, isso não é comum. Boa Noite, Tristão, Boas Simão, Que ares te fazem sair de casa a estas horas, Nada demais, não estou a pensar em algo que tenha me acontecido, só saí para pegar um ar que o calor está demais, É mesmo, nem eu estou a pensar em nada, é o calor que não estou agüentando, mas eu já vou indo, Sente-se um pouco, João, vamos cantarolar alguma coisa, quem sabe esse calor não se distrai e nos deixa em paz, Está bem, mas só um pouco, que bem sei que acordas cedo e precisas dormir. E começou João a cantar e a tocar sua viola de cocho, e Pedro, fascinado pela habilidade de João em conduzir o instrumento, esqueceu-se das horas, e o povo que passava não acreditava no que via, Pedro trabalhador e João desocupado, que é como chamavam João, que de desocupado sabemos não tinha nada. E lá ficaram a noite toda, a vila começou a ficar deserta e eles nem se deram conta, madrugada a dentro, ninguém mais na rua, só eles, e Pedro prestando demasiada atenção às mãos de João Simão, que hora ou outra parava de tocar para explicar a Pedro as posições dos dedos de uma mão sobre as casas e o dançar da outra sobre as cordas, A quinta corda é a dó, a quarta é a sol, a mais grave, a terceira é a lá, a segunda é a ré e a primeira é a sol, Mas isso eu já sei, já que fabrico cochos preparo também as cordas, da tripa da ema ou do bugio, e Pedro até pegou o cocho e arriscou um ponteio tímido, que João incentivou dizendo É isso mesmo, o jeito você já leva, O que não sei é formar um som com um monte de cordas juntas, Mas isso não é lá tão difícil, a quinta solta, a quarta também, a terceira você prende na terceira casa, a segunda na segunda, e a primeira solta, pronto, dó maior. E conversaram, cantaram, e só pararam quando o dia já ameaçava nascer, os galos, curioso relógio natural, começaram a cantar quando o sol ainda não despontava, mas parece que os galos possuem um dom especial, fazendo-nos pensar que é para isso que foram feitos, que percebem pela brisa quando a manhã está para chegar, e depois que cantam, em mais ou menos uma hora estará o sol a nascer. Foi quando Pedro Tristão falou, Já é tarde, ou cedo, não sei, sei que já é hora de ir, Também vou indo, e levantaram juntos, caminharam juntos, que moravam para o mesmo lado. Chegando em sua casa, Pedro parou, e quando já ia João se despedindo, Pedro convidou-o para entrar, para conhecer seu cocho de estimação.

Frido caminha pela praça, tranqüila e sossegadamente, como num dia qualquer, cumprimentando os fiéis sorridentes, felizes pelo trabalho realizado, e feliz também Frido com o próprio trabalho, o divulgar da palavra de Deus, a imprensa divina, sendo ele o repórter dos céus, cargo importante, já que outro jornalista não há, e poderia muito bem se beneficiar desta posição, já que só cabe a ele selecionar o que o povo deve ter conhecimento ou não, mas Frido é boa pessoa, e como dizem, boas pessoas atraem maus presságios, e Frido parecia estar em sintonia com esse dito popular, já que sua alegria parece não ter sido feita para durar mesmo, pois eis que surge no final da rua, Christian e Vicent, vestidos com ternos, falando algo entre si e apontando para ele, e passam a correr na direção de Frido, que foge, e eles gritam, Hallo Sie, Halt!, e Fritz não obedece e continua correndo, desesperado, sem olhar para trás, que atrás sabe estarem Christian e Vicent, com olhos incendiados pelo inconfundível ódio, quando Frido ouve o disparo, pá, e mais um, pá, e outro, pá, e depois sente os projéteis perfurando sua carne crua, o primeiro na perna, desviando-lhe os passos do caminho do Senhor, mas ele continua, pois, embora já tenha entrado na vereda dos perversos e andado pelos caminhos dos maus, Frido se recuperou, e não se estreitam seus passos, e o segundo tiro foi nas costas, varando os pulmões, mas Frido é forte, velho mas forte, já que andou boa parte da sua vida a passos contados nos ensinamentos de Deus, e disso vivem os homens, nisso está o suspiro da vida, e o outro tiro foi na cabeça, e, sabendo-se pertencerem os homens bons aos planos do coração, Fritz não pensou com o coração, já que não arrependido, e acorda, em poças de suor. Uma noite ruim de sono, pesadelos relacionados aos seus conterrâneos alemães, seus maiores medos sendo trazidos à tona, revelados a ele mesmo, que queria esquecer. Frido só tinha um desejo, que era o de ser poupado do sofrimento, uma morte em preto e branco, desprovida de qualquer significação, o que provavelmente não aconteceria, e já imaginava como seria sua morte, se seria torturado ou se seria levado vivo, o que é pior, para servir de exemplo, será que já não bastava o que sofria sozinho, e queria arrumar uma maneira de morrer em paz consigo mesmo, de abandonar esses seus tormentos nos corredores do seu passado, Oh Deus, quão caro é o que me cobras.

Lamenta Frido sua condição de padre pecador, que é o mesmo do que estar entre a cruz e a espada e não saber ao certo se a espada é de ferro ou de borracha, ou se é a cruz feita para adorar ou para carregar e ser pregado a ela.

Duas suaves batidas na porta trazem Frido de volta ao chão, embora saibamos que não estava ele a voar, fisicamente, apenas em pensamentos, Entre. Marthe entra, dizendo querer se confessar. Frido, ainda um tanto impressionado pela sua própria imaginação, querendo não acreditar mas já se rendendo ao que julga fato, imaginando que tudo não deve passar de um truque para apanhá-lo, não consegue disfarçar seu nervosismo, mas mesmo assim conduz Marthe até o confessionário, Por aqui, minha filha, ajoelhe-se que já venho lhe ouvir. Frido entra no confessionário e Marthe toma sua posição, ajoelhada frente o tribunal de penitências. O que te afliges, minha filha, Padre, perdoa-me porque pequei, Abra teu coração para Jesus, minha filha, que ele é benevolente e saberá te dar o perdão, que pecadores somos todos, e assumir o pecado é querer confessá-lo ao Senhor, e só isso já é uma dádiva que poucos têm, Cometi adultério, padre, Estou ouvindo, filha, Não pude me conter, num breve momento o desejo da carne foi mais forte que minha fé na palavra de Deus e me rendi, Não diga isso filha, que a palavra de Deus é maior que qualquer coisa, o importante é o arrependimento, e padre Frido, ao dizer estas palavras, lembra que ele mesmo não se redimiu, e questiona como pode levar a palavra de Deus se não é capaz de cumpri-la plenamente, que é o mesmo que contar algo que não se viu, apenas se ouviu, e inventar logo coisas para ornamentar o original, querendo torná-lo mais interessante, mais convincente, segundo nossa concepção, e era isso que vinha acontecendo, Frido dizendo para as pessoas fazerem coisas que ele próprio não era capaz de fazer, E não foi só uma vez não, padre, continuou Marthe, Mas duas, Sei filha, sei, E não sei se me arrependo, já que foi muito bom, e… Frido já não prestava mais atenção ao que Marthe dizia, tentando resolver seu próprio e maior pecado, com sua consciência, se é que ainda há tempo para ele, que se formos ver e contar, tempo suficiente já teve, embora Frido ache que para essas coisas uma vida só não basta, mas o que nós não sabemos é se Deus é lá tão paciente assim com esses assuntos, que se duvidar, talvez já esteja Frido condenado há muito tempo, e tudo o que vem fazendo já não tenha mais valia, não que não seja de todo válido, pois para os liunenses é muito válido o que faz padre Frido, mas talvez não seja mais válido para ele, no seu galgar rumo ao paraíso, … e é isso, padre, mereço o seu perdão, Claro minha filha, claro, embora o perdão não seja meu, pois não sou eu que estou a te julgar, tenho procuração, uma espécie de mandato divino, e todos somos inocentes perante Jesus, isso eu posso te garantir minha filha, reze lá dez ave-marias e dez pai-nossos e fica com Deus, Das Segnen, Priester, Gott… De-Deus te abençoe, minha filha, Deus te abençoe.