Pasqual era revisor de textos numa editora menor de Lisboa. Como haviam muitos títulos brasileiros, precisavam de um brasileiro: Pasqual, que fez questão de mudar a grafia original do nome de Pascual para Pasqual. “Só para irritar os tugas”, dizia. Na verdade, Pasqual não irritava ninguém. Antes de ser revisor de textos, Pasqual fora poeta frustrado, escritor fracassado, músico medíocre, e crítico literário rechaçado. Embora não pareça um currículo interessante, Pasqual conseguiu encontrar sua verdadeira veia — ao menos vinha mantendo-se empregado nos últimos 5 anos. Um recorde!
“Ah, que dia perfeito!”, exclama Pasqual. Areia limpa, temperatura ideal… Debaixo do guarda-sol, Pasqual olha para a pequena pilha de livros que trouxera, mistura de lazer e trabalho, que exigiam atenção. Um deles ainda do ano passado, posto de lado por causa do celul… — “telemóvel, Pasqual… telemóvel”, corrige-se imediatamente.
Crítico ferrenho dos telemóveis, Pasqual não entendia como um objeto que formara mais toxicodependentes do que décadas de tabaco, álcool, heroína, cocaína e maconha, ainda era legal, e ninguém se empenhava em apreender os tantos que por aí iam livres, leves e soltos, tanto no clarão do dia como na calada da noite, nas ruas das cidades e nos campos, nos lares e nos bares, nas oficinas, nas escolas, nos clubes… como não metiam na prisão os responsáveis por essas empresas tecnológicas que produzem e aperfeiçoam tais ‘drogas’, com o descarado intuito de angariar, granjear mais dependentes, e assim aumentar os lucros, já enormes, a custa da sanidade dos usuários; e ainda as lojas que os vende a portas abertas, no mais perfeito tráfego legalizado de que se tem notícia na história da humanidade!
Com essas idéias, ao invés de ficar deitado com a cabeça num travesseiro de areia olhando coxas gostosas, Pasqual ficava mesmo era sentado, incomodado, observando as pessoas se renderem ao controle dos celulares — telemóvel é o caralho, pensa — a cada cinco minutos, e o pior, se rendem pela vontade de outras pessoas, que seguem e/ou são seguidas, e de quem são ou amigas, ou influenciadas, ou influenciadores. Isso sem contar quando usam o celular para fotografar o lugar onde deveriam estar presentes em corpo E MENTE, mas não, preferem abster-se da mente para partilhar com aquela outra humanidade, a virtual, igualmente dependente, que pode comentar (que se não comentar é pior) numa linha ou duas, escrita numa linguagem infantil e inane, cheia de símbolos e abreviações (e ainda chamam isto de comunicação), pois o lugar só existe, só adquire realidade e espessura depois de fotografado, compartilhado e comentado — que ao menos ganhe um like…
Pasqual irritava-se com essa transformação de um lugar real numa interpretação colorida, em duas dimensões, para assim poder viajar pelos cabos de rede, fibra ótica ou ondas celulares até as telinhas alheias, espalhando a mensagem SOU FELIZ, estou num lugar MARAVILHOSO (fotografado com o meu ‘Provocador de Invejas’), e minha experiência é MUITO MELHOR do que a sua (seja lá o que for, pois realmente não interessa)!
Calmo e relaxado, Pasqual curte as férias como um príncipe, observando as pessoas…
Tudo ia bem, Pasqual usufruindo do celular de maneira consciente, “com moderação”, dizia, até o instante em que, perto, num guarda-sol vizinho, alguém espirra! Se espirrasse uma vez vá lá, mas não… espirra uma, depois duas, depois três! Ouve-se o restolhar do kleenex, desajeitado,tentando conter a gosma que escorre do portento nariz. Aliás, o individuo (no caso, “indivídua”) que traz kleenex para a praia é justamente porque sabia que podia espirrar… portanto a pessoa sabia que estava doente, e ainda assim veio para a praia!!!
Pasqual resolve ignorar: “Não há de ser nada”, tenta convencer-se. “Afinal, o pior do Covid já passou!” Minutos depois segue-se a rouca convulsão de uma tosse seca, intervalada, que a fulana tenta disfarçar… mas a essa altura, a fulaninha mudou de categoria, deixando de ser uma simples “tossinte” e agora passando a ser uma perturbadora… a perturbadora das férias de Pasqual! E a inevitável suspeita surge: Covid!
Covid, a lepra da vez! “Pode estar com Covid”, com C maiúsculo, pensa Pasqual. E quando a tosse interrompe o espirro e o lenço é usado com generosidade, rapidamente o ‘pode estar com’ transforma-se num simples ‘só pode estar com’.
Pasqual olha em volta atarantado, mas sente-se só no seu atarantamento, e considera a possibilidade de se afastar da condenada. Rapidamente procura ao redor… há muitas crianças — esses seres mágicos, não vacinados, destinados a espalharem o vírus e todas as suas variantes, tanto as existentes quanto as ainda por vir, independentemente do receptáculo estar vacinados ou não! Pasqual procura um grupo de não-jovens — gente jovem é um perigo! Um grupo de velhos com boas cores seria o ideal, considera. “Não podem ser velhos com ar de doentes… devem ser velhos vacinados com a boa vacina, a boa Pfizer!”
Pasqual teme já ter apanhado o maldito! Com esforço, arfante, desenterra o guarda-sol, embrulha a toalha, avança uns tantos passos já cambaleantes, deposita a bagagem estival não muito junto de grupo nenhum — nessas horas melhor mesmo é o isolamento, conclue Pasqual, que só encafurna o celular nos fundões do saco depois de ter ido três vezes ao Google para verificar “sintomas do Covid”. Em inglês: running nose, lá está; dry cough, está lá também. Pega o livro abandonado, com a melhor das intenções, e mete-lhe a cara. Impossível ignorar a conversa que vem do grupo ao lado, que haviam alugado uma casa, todos entusiasmados, e de repente um deles testara positivo, e todos tiveram que fazer quarentena! “Imagina, virem de sei lá que país e passarem 15 dias fechados dentro do quarto em quarentena, com este calor… Coitados!”, simpatiza Pasqual.
Com o ouvido atentíssimo, Pasqual não está nem lá nem cá. Os velhos parecem saudáveis, quase alegres, apesar das soturnidades da conversa sobre as proclividades do Covid aliadas a conhecimentos medicina de jornais e TV, e claro, do Dr. Google. Cada um de nós virou ou virologista, ou estatístico, ou especialista em qualquer área que seja, e as vezes tudo junto, traçando cenários, previsões e desastres que ‘certamente’ vão acontecer.
E assim, no começo daquele dia de verão perfeito, Pasqual agora se vê afogado num inverno de más notícias! Resolve descansar destas agruras e recorre a um jornal comprado na banca local, quase a única, pois os jornais vendem pouco (já os celulares…).
Pasqual lê as notícias. Confusão na Grécia, confusão na Sicília, confusão na Calábria, confusão na Turquia, e em todo o Mediterrâneo. Fotografias, cenários dantescos, manchas alaranjadas sobre esqueletos negros de árvores cobrem o jornal, desalojando os alertas mundiais da Covid. As alterações climáticas, e o relatório dos especialistas que dizem que ultrapassamos o ponto de não retorno da catástrofe planetária, que as ilhas vão desaparecer, a água vai escassear, que as montanhas vão desmoronar, que furacões vão arrasar, que chuvaradas vão inundar, que casas vão desabar, que animais vão extinguir-se, que plantas vão secar, que mares vão subir, que plástico vai flutuar na nossa corrente sanguínea, e vamos todos morrer, mas que Ele, O Capital, sobreviverá!
Quando se vive num mundo que tudo faz para não nos deixar parar, cada vez mais acelerado, estimulante, tentador e apelativo, onde deixamo-nos levar pela rapidez e pela velocidade da vida, é preciso tanto de nada fazer, de nada pensar, de apenas estar quieto, reparando o presente… que parece até paradoxal, mas na realidade leva tempo, não se está quieto de um dia para o outro. Estar quieto é um caminho que se percorre.
Pasqual pousa o jornal, pega o celular, fotografa o mar azul, a areia branca, e legenda ao contrário do que sente: “estou no paraíso”, e os likes não param de chegar…