— Nunca pensei que este lugar existisse de verdade… – comentou Panfílio com alguém que caminhava ao seu lado.
— Que lugar? Disse o outro, ainda meio desorientado.
— O purgatório.
— Purgatório? Como sabe que estamos no purgatório?
— Ora, basta olhar ao redor… Não é a Terra, não é o Inferno, tampouco o Paraíso. Parece mais um não-lugar, um nível intermédio entre mundos.
— Quer dizer então que… morremos?
(Silêncio).
Panfílio era um soldado que fora morto em batalha. Como todos os mortos quando desencarnam, levam um tempo para entenderem o que está acontecendo. O tempo de desorientação varia, de acordo com o tipo de morte e circunstâncias. Mesmo aqueles cuja morte é iminente, sentem-se desorientados, mas os de morte repentina e inesperada são os piores.
Embora todos partam deixando para trás os negócios terrenos, as memórias terrenas permanecem com a matéria não-corpórea até o momento da nova encarnação, quando voltam para a Terra e encarnam um novo corpo. Geralmente outro corpo humano, mas não é uma regra…
De acordo com a Lei da Ação e Reação em voga no lugar, é no momento da encarnação que a matéria não-corpórea decide como será seu destino terrestre. Não absolutamente, mas um grande aspecto do que essa vida será. Para isso, são prostradas frente a uma grande Balança, a Balança das Ações, onde são colocadas todas as ações terrenas daquela alma, as boas de um lado e as más do outro. Não só as ações da última encarnação, mas de todos os tempos! Enquanto houver desbalanço entre os lados da Balança, a matéria não-corpórea está fadada a voltar à Terra.
Neste momento, não basta escolher voltar como uma boa pessoa, e assim tentar aliviar um lado da Balança, pois o comportamento está associado às coisas não pré-determinadas. Aliás, poucas coisas são pré-determinadas, mas o comportamento, particularmente, é sujeito a inúmeras interações entre, e pode tomar rumos completamente diferente do que fora planejado, e acabar desbaslanceando ainda mais a Balança das Ações.
A maneira mais eficaz de tentar equalizar a Balança, dizem, é pelo sofrimento. O sofrimento traz o benefício de transformar profundamente o encarnado. Tem quem escolha encarnar com algum tipo de deficiência física ou mental. Tem também aqueles que escolhem perder entes queridos muito cedo, outros escolhem eles mesmos partirem muito cedo, em acidentes horríveis, ou de maneira violenta, ou ainda por doenças incuráveis… tudo na tentativa de aliviar a Balança das Ações.
Há uma lenda que diz que uma certa matéria não-corpórea, ao ver tamanho desequilíbrio em sua Balança, decidiu voltar não-humano. Motivado pela enormidade de decisões e responsabilidades que cercam os humanos, só havia uma coisa pela qual ansiava: simplicidade! Em um misto de decepção com a raça humana, e romantismo bucólico, escolheu voltar um cavalo! Talvez pelo porte físico portento, elegante no galope… mas certamente pela simplicidade!
Uma vez anunciada a decisão, a alma começou a um processo de transformação para acomodar-se ao corpo de um cavalo: os músculos, os pelos, os membros, os dedos se amalgamando em casco, os joelhos, os quadris, e finalmente, o crânio… Conforme o crânio se alongava, o cérebro se acomodava, os neurônios se redirecionaram, e as sinapses se reconectaram nos padrões equestres, e o entendimento do que estava acontecendo começava a galopar cada vez mais para longe! A preocupação com os assuntos humanos começou a desaparecer, a maneira humana de pensar começou a se esvair, e de repente, por um breve momento, o que restava de pensamento humano se dá conta do problema que havia deixado passar despercebido: quanto mais se transformava em um cavalo, mais se esquecia do desejo original de ser um cavalo, o que tornava a decisão, imbuída em uma certa “nobreza” racional, vã! O que restava de humano esquecia-se, aos poucos, o que era ser um humano, enquanto tentava se perguntar se deveria ter considerado melhor o recipiente para a matéria não-corpórea. Não sabia, por exemplo, que o cérebro do cavalo representa apenas 0.15% da sua massa corpórea total, e que seu neocórtex é menor em proporção ao tamanho total do cérebro quando comparado ao dos primatas…
Tal momento de lucidez tampouco durou muito, servindo apenas para reforçar a punição… um momento posseidônico, poderíamos dizer, de um ser em plena transição, meio cavalo, meio humano, sem poder se deleitar com a simplicidade de ser um cavalo, tampouco se exaltar na nobreza humana da decisão tomada! E na última fração de pensamento humano que lhe resta, imagina que na próxima vez que desencarnar, com seu cérebro de cavalo, não terá a capacidade de discernir o que é ser humano, e não conseguirá elaborar o desejo de encarnar humano novamente, e percebe, desesperado, que sua escolha de retroceder na escala da inteligência é irreversível!
Panfílio caminha… caminha junto com outras almas neste lugar que chamou de Purgatório. De onde se vê, há duas aberturas contíguas, com um espaço entre elas, onde ficam os “juízes” – ao menos parecem julgar, já que depois de se pronunciarem, as almas seguiam seu rumo, umas para a abertura da direita, que sobe ao Paraíso, outras para a da esquerda, que desce à Terra. Não havia uma terceira abertura.
— Eu sabia! Exclamou Panfílio, conforme caminhava em direção aos juízes. O Inferno não existe!
— O Inferno é a própria Terra meu amigo! Comentou um outro que caminhava à sua frente.
Tinha essa luz, cujo brilho se intensificava mais e mais conforme Panfílio se aproximava das aberturas e dos juízes. Via-se no horizonte, e estendia-se em curva pelo céu, até tocar novamente a terra. Parecia um arco-íris, só que branca, mais brilhante, e de luz mais pura. Essa luz parecia segurar todo o firmamento!
Todas as almas que ali estavam caminhavam em pares. Embora parecesse que tinham acabado de chegar da Terra, muitas pareciam vir de uma longa travessia, e tinham uma aparência mais suja, quase imunda mesmo. Outras chegavam mais vibrantes, vigorosas e limpas. Umas contavam experiências maravilhosas e visões de indescritível beleza. Outras gemiam e choravam, recordando sofrimentos e dores de viagens passadas. Todas caminhavam em direção aos juízes, lado a lado, passo a passo. A seleção era rápida, não chegava a causar aglomerações; as almas avançavam a passos lentos. O protocolo regia que cada alma pagasse sucessivamente todas as injustiças cometidas durante a estadia terrena, e cada injustiça era paga em termos de anos… muitos anos de vida terrena! Os atos justos eram também recompensados na mesma moeda, porém ao inverso – reduzindo os anos terrenos.
Embora os anos atribuídos pudessem variar de acordo com o juíz, era mais ou menos consensual que cada pena era paga em períodos de cem anos, com excepções para crimes hediondos, em que as penas eram ainda maiores. Apenas as almas que se livrassem totalmente de suas dívidas eram dispensadas do regresso à Terra.
Uma vez entendido o processo, Panfílio reflete no que o homem à sua frente comentara, e conclui que ele estava certo ao afirmar que o inferno era na própria Terra. Panfílio recorda-se de uma história que ouvia em criança sobre Tithonus, que havia sido “agraciado” com a imortalidade, porém sem juventude. Dizem que Tithonus ainda hoje envelhece, tornando-se cada vez mais frágil e eternamente incapaz de morrer!
As almas, antes de regressarem à vida terrena, passavam pelas Moiras, filhas de Ananque, também conhecida como Sra. Necessidade, domadora tanto dos homens quanto dos deuses. Cloto, Láquesis e Átropos, as três irmãs, três mulheres lúgubres, vestidas de branco, com grinaldas na cabeça, responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os seres vivos. Neste tecer determinístico, a Roda da Fortuna se posicionava, a cada volta, em uma parte mais ou menos desejável, mais ou menos privilegiada, o que explica bem os períodos de boa e má sorte das vidas terrenas…
Embora este tecer passasse a ideia de que as Moiras controlavam o destino de todos dos mortais, na verdade elas apenas personificam o conceito de destino e a ideia de que a vida é pré-determinada desde o nascimento até a morte… Na verdade, quem escolhe é a própria alma – as Moiras apenas fazem as escolhas acontecerem.
Cloto é a responsável por iniciar a tecelagem do fio da vida no momento do nascimento. É o início da existência, já que a alma deve voltar à Terra. Láquesis é a encarregada de medir o fio da vida, cuidando de seu comprimento e dos eventos que ocorrerão durante a existência, sempre de acordo com as escolhas da alma. Já Átropos, a mais temida, conhecida como “A Inflexível”, é responsável por cortar o fio da vida. O momento do corte, porém, é pré-determinado pela própria alma.
O fuso girava nos joelhos das Moiras. No cimo, uma sereia emitia um som uníssono. Uma única nota musical que formava uma melodia completa. As três Moiras sentadas em círculo, cada qual em seu trono. Assim que chegavam, as almas tinham que se juntar a Cloto para dar início ao tear.
Uma vez iniciado o tear, as almas se dirigiam a Láquesis, que sem delongas, anuncia:
— Almas mortais, está na hora de começar uma nova vida na Terra. Vocês não serão escolhidas por algum tipo de condutor – muito pelo contrário, vocês escolherão seu próprio caminho. Aqui ninguém controla o que é certo ou errado; cada uma de vocês terá mais ou menos virtudes, dependendo de como agirem. Vocês são responsáveis pelas suas próprias escolhas, e os deuses não podem ser responsáveis pelos acontecimentos que vocês mesmo escolheram.
Nesse momento, um mensageiro pega um lote com modelos de vida e dispõe-os para que as almas escolham. Há modelos para todos os gostos, ou melhor, para todos os destinos. Mas tal escolha não é fácil nem banal, e pode resultar em uma verdadeira armadilha. O essencial é escolher com a moderação necessária para não cair na ganância nem da tirania nem da riqueza, evitar os excessos da vida mundana e usar sempre muita prudência no que quer que seja. Só assim, professava-se, os humanos alcançariam a felicidade absoluta. A escolha deveria ser motivada pela busca da virtude, já que a responsabilidade reside totalmente em quem escolhe.
Finalmente chega o momento de visitar Átropos, onde o resultado final do destino escolhido pela própria alma é exposto, e explicado que ela, Átropos, simplesmente executará o ato final, no momento pré-determinado.
Depois disso, as almas são conduzidas para beberem as águas dos rios Letes e Ameles, o que garante que não apenas esqueçam suas vidas passadas, mas também reflitam sobre a responsabilidade e a prudência no processo de reencarnação, na vida que está por vir.
Troa um trovão ensurdecedor, anunciando que é chegada a hora das almas irem ao encontro dos seus destinos, e nascerem, enfim.
Pouco antes de encarnar, Panfílio, consciente de que perderia suas memórias, lembra da lenda da alma humana que encarnou como um cavalo, e pondera… seria tudo isso parte de um ciclo? Tenta imaginar quantas encarnações o cavalo retornaria como cavalo, e na sua incapacidade de promover-se a um ser superior, ao quê se reduziria, depois de completado seu ciclo equestre? E em seus últimos momentos de lucidez, tenta imaginar qual criatura, fantástica, talvez desiludida com seu mundo, com a ideia de uma vida mais simples, escolhera descer na escala da inteligência, e encarnar como um ser-humano.