Depois que mãe se foi – há tempos prefiro usar “partir” ou “ir”, ao invés de morrer. Poderia mesmo usar “desencarnar”, mas pode soar muito literal. Depois que mãe se foi eu quis manter alguns objetos dela como lembrança. Pequenas coisas, como um caderno onde ela escrevia receitas – só para lembrar da caligrafia dela. A coleção de selos. Os bibelôs de corujas. Os artesanatos… eram tantos! Consegui reter uma colcha de fuxicos, os boneco-pingentes de galinhas e legumes, um relógio de legumes, um casaco de retalhos…
E tinha os quadros. Principalmente os quadros de barcos. Eles me cativavam mais, não sei por quê… Mas não pude tê-los. A pressa da vida me impediu; tinham que sair de onde estavam, porque quem os guardava assim queria. E numa oportunidade qualquer, se afastaram…
Mãe gostava de pintar, é só. E com dois filhos, difícil dividir-se por igual. Mas tentava. Tinha preferências? Talvez. Mas nunca ao ponto de prejudicar o suposto “não preferido”. Talvez se pudesse dizer quase o mesmo de pai, cujas preferências eram faladas mais abertamente. Não ao ponto de interferir ou influenciar uma criação… pudera, isso só se tornou aparente depois da morte de mãe, quando já éramos adultos formados, menos suscetíveis a despreferências.
Sobre os quadros de barcos, era evidente a preferência de todos: pai, mano, e eu. Havia um desejo geral pelas pinturas de barcos. É possível que eles tenham um significado mais profundo. Provavelmente dizem mais, para todos os preferirem. Só podem dizer mais. A cada um de uma maneira diferente, como diferentes somos todos. E como não houve testamento, não se pode estas coisas medir. E como ninguém é dono de nada, também todos são donos de tudo, e a influência de cada um é o que fala mais alto. Me pergunto, e se fosse mãe? Com mãe seria diferente. Bem diferente.
Perdi os quadros de mãe. Cantarolo Naquela Mesa, belíssima homenagem do Sérgio Bittencourt ao seu pai, Jacob do Bandolim. “Eu não sabia que doía tanto / Uma mesa num canto, uma casa e um jardim”… Geralmente não doem, mas há momentos em que a imagem dos quadros pulam à frente de todas as outras coisas, e se fazem prioritários. Me emociono. Seja por causa do vinho, seja mesmo a saudade, ou a ocasião, ou tudo junto…
Inspirado, chego a mudar a letra do verso final:
Eu não sei bem o que se sucede
Nenhum quadro na parede causa algo em mim
Se eu soubesse que eles iam embora
Talvez nessa hora, eu não estaria assim
Me resta agora a parede vazia
Mas eu só queria ter lembranças também
Na minha parede estão faltando os barcos
Que pra mim são os marcos, dos quadros de mãe.
Os quadros de barco de minha mãe estão na minha memória…
Quiz, por muito tempo, alguns deles na minha parede…
Já nem sei mais se os quero ainda…
Mais urgente é a parede…
Para as memórias.