Depois que mãe se foi – há tempos prefero usar “partir” ou “ir”, ao invés de morrer. Poderia mesmo usar “desencarnar”, mas pode soar muito literal – depois que mãe se foi eu quis manter alguns objetos dela como lembrança. Pequenas coisas, como um caderno onde ela escrevia receitas – só para lembrar da caligrafia dela. A coleção de selos. Os bibelôs de corujas. Os artesanatos… eram tantos! Consegui reter uma colcha de fuchicos, os boneco-pingentes de galinhas e legumes, um relógio de legumes, um casaco de retalhos…

E tinha os quadros. Principalmente os quadroes de barcos. Eles me cativavam mais, não sei por quê… Mas não pude tê-los. A pressa da vida me impediu; tinham que sair de onde estavam, porque quem os guardava assim queria. E numa oportunidade qualquer, foram levados para longe… Ficaram ainda na família, por certo, mas… Família. Que unidade é esta, se alguma?

Minha mãe gostava de pintar, é só. E com dois filhos, difícil dividir-se por igual. Mas tentava. Tinha preferências? Talvez. Mas nunca ao ponto de prejudicar o suposto “não preferido”. Talvez não se possa dizer o mesmo de meu pai, cujas preferências são mais aparentes. Talvez não ao ponto de interferir ou influenciar uma criação… pudera, isso só se tornou aparente depois da morte de mãe, quando já éramos adultos formados, menos suscetíveis a despreferências.

Sobre os quadros de barcos, era aparente a preferência de todos: pai, mano, e eu. Todos queriam os quadros de barco. Talvez dissessem mais. Provavelmente dizem mais… Para todos os preferirem, só podem dizer mais. Mas como não houve testamento, ninguém é dono de nada, e todos são donos de tudo. E aí tudo fica mais complicado. Seja irmão, seja pai… as preferências de cada um vai acabar falando mais alto. Se fosse mãe? Talvez não.

Perdi os quadros de mãe. Eu não sabia que doía tanto, alguns quadros não pendurados… Geralmente não doem, mas há momentos em que a imagem dos quadros pulam à frente de todas as outras coisas, e se fazem prioritários. Seja por causa do vinho, seja mesmo a saudade, ou a ocasião, seja tudo junto… Os quadros de barco de minha mãe estão na minha memória. Embora quisesse eles – ao menos alguns deles – na minha parede.

Poderia tentar recuperar um ou outro, já que continuam na família, mas já nem sei mais se os quero ainda…