9.
Que faz esta figura parada na porta da minha alma, sorrateira, momentânea, a ouvir, pouco, e some imediatamente no meu nada, e o que sou eu, que permito e desfruto até, sem saber se sinto por mim ou deixo apenas que sintam-se, sós, os sentimentos, sem guia, enquanto eu apenas assisto, abismado, seu desenvolvimento no plano maior, superior de mim, sem saber ao que vim ou ao que fui, se nada sou capaz ainda de concluir, tento pensar, calmo, o que imagino um pensar, que dúvidas não me faltam, e respostas não me querem chegar, nenhuma, ou talvez ainda não saiba bem aonde procurá-las, se é que de mim depende este saber, que se depender, totalmente, por agora me declaro ignorante, pois pistas não tenho, e ensinamentos não me foram passados, e se cada um deve saber destas coisas naturalmente, por si só, por seus próprios caminhos, onde foi que me desviei neste meu tão errado, onde fiz a escolha que não foi a certa, ou fizeram-na para mim, que também é possível, iniciado errado, desde o princípio, sem oportunidade de escolha, sem chance de optar entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o reto e o torto, entre o curto e o longo, entre o suave e o árduo, onde foi que eu errei padre Frido, de onde origina esta minha agonia?
Padre Frido ouviu esta confissão de duas pessoas diferentes, e para cada uma delas poderia ter respondido Pedro, meu filho, embora não me negaste o nome três vezes, tenho um carinho especial por ti e sofro também com essas tuas agonias, mas se tivermos em mente que essas coisas são fontes sem água, nuvens levadas para longe com o vento, nos quais a escuridão das trevas eternamente se reserva, viverás melhor, e saberás que o importante não é o saber, que existem coisas que nasceram ou foram feitas para não serem conhecidas e outras ainda para nem ao menos serem questionadas, que só assim poderemos alimentar nossos sonhos de buscar saber alguma coisa, que se fizermos logo todas as perguntas de nossas vidas, poderemos já não encontrar todas as respostas, e por conseqüência, um tamanho desânimo poderá se instalar em nossos corações que seria capaz de nos reduzir a vida e a própria vontade de viver, uma vez que nada mais teríamos para perguntar, e não digo que isto seja de todo ruim, pois bem sei que existem muitos por aí que nada mais têm para perguntar, e muitas vezes não é nem por terem perguntado tudo de uma só vez, mas por não saberem o que perguntar, por não terem aquela voz que nos faz aquelas perguntas que queremos saber, lá no fundo de nossas cabeças, a nos incomodar e a tirar nosso sono, e vivem bem estes, que parece-lhes ser melhor nada saber, sem saber que nada sabem, ou sem se importar, por pouco que seja, e menos ainda perguntar, que melhor mesmo é ir levando a vida assim, caudalosa e sonolenta, sem preocupações ou dúvidas, já que tudo não passa disso, mas sei bem que não é este teu caso Pedro meu filho — e padre Frido chama Pedro de filho só por carinho, que bem sabemos não terem eles esses parentescos — Sei também que de nada te adiantará essas minhas palavras enquanto não souberes o que te confunde, e bem sei o que sentes, porque também eu nasci com essa estragosa sensibilidade que deprime os seres e prejudica as existências, se bem que não a usei sempre para as coisas boas como tu, pois nem sempre fui padre, e nem mesmo bom eu era, muitos já matei, e muito já roubei também, mentiras, o próximo era eu mesmo, e o pior é que não me arrependo, sei que o que fiz foi errado, mas não sou capaz de me arrepender, acredito sim, que hoje não faria novamente, e se queres saber de toda a verdade, nem padre eu sou, embora me considere, mas não sou, e de todas as coisas que falo, muitas são da minha cabeça, que não acho lá muito certa a justiça divina, e outras são tiradas da Bíblia, mas eu me viro, e acredito até que esteja fazendo um bem a vocês, e espero que você, Pedro, não fique chocado com o que eu acabei de lhe contar, e peço-te um favor, que não espalhe por aí essa história, sabe como é, não ficaria bem, talvez ninguém mais viesse à igreja. E Pedro responderia Tudo bem padre Frido, não se preocupe, reze lá uma ave-maria e um pai-nosso e fica com Deus. Mas nada disso acontece, e padre Frido apenas diz Que a graça e a paz te sejam multiplicadas, Pedro, reze lá dez ave-marias e dez pais-nossos e fica com Deus.
Ao outro, diria Frido João meu filho, tenho um carinho especial por ti e sofro também com essas tuas agonias, mas devemos ter em mente que essas coisas as temos para que nosso gozo se cumpra, que se és sábio, deverás ser para ti mesmo, mas se és escarnecedor, não o conseguirás ser para outro além de ti, para isso basta ser-se, basta teu viver, teu cantar e teu falar, que bem conheci teu pai e tua mãe, e sei bem da tua vida, mereces viver em paz eterna e não é bom que procures tormentas, acalma teu espírito que tudo se resolverá, tu já tens o conhecimento, basta ordená-lo nas idéias e no coração, não te preocupes com mal-dizeres de outros que não merecem o lugar que teu cocho ocupa na tua parede, saiba se remir, aprenda a viver apenas com teus dons, que é bem assim que tua mãe queria e teu pai também, embora de maneiras diferentes. Aproveita enquanto és jovem, que podes dirigir a ti mesmo e andar por onde queiras, que depois que ficares velho, estenderás tuas mãos para que outro te guie e te leve para onde não gostarias de ir, e digo isso não para que te desanimes ou que te amedrontes, mas para que te preparares para a vida, que nunca devemos esperar um beijo na face ensangüentada, nunca devemos esperar o pedaço de queijo na boca faminta, mas sim aprender a erguer o rosto deformado e a manusear a faca com a mão amputada, que eu, João meu filho — e padre Frido chama João por filho pelo mesmo sentimento de carinho que tem com Pedro —, eu já fui muito ruim nessa vida, muitos já matei, e muito já roubei também, mentiras, o próximo era eu mesmo, e não me orgulho disso, embora não consiga me arrepender, explorava as pessoas, roubava-lhes o suado dinheiro sem dar importância a como elas iriam ficar, sem comer, sem ter onde morar, explorava os mais baixos sentimentos do ser humano, desisti da minha própria vida por alguns punhados de dinheiro, mas isso já passou, desde que eu aqui cheguei e me fiz de padre, vivo melhor, sim, me fiz de padre, que padre mesmo nunca fui, mas até me considero, embora eu me questione se estará Deus contente com o que fiz e com o que venho fazendo, se ele vai esquecer do meu passado mesmo eu não me arrependendo, e para isso eu rezo muito, rezo bastante, todas as rezas que conheço, as rezas dos desesperados, dos amargurados, dos angustiados, dos desencorajados, dos desviados, dos enfermos, dos desprotegidos, dos ansiosos, dos agradecidos, dos derrotados, dos desprovidos, dos preocupados, dos faltosos de fé, dos tentados, dos infelizes, dos contentes, todas, rezo todas de uma só vez, na esperança que lá em cima haja alguém para destrinçá-las, separá-las por assunto, devoção e interesse. E te peço, João, por Deus, não saias por aí espalhando que ouviu essas coisas de mim, pois se fizeres, temo que ninguém mais venha às missas, e isso seria o mesmo que me mandar para o inferno, sem ao menos a chance de eu tentar me purificar. E João responderia Tudo bem padre Frido, não se preocupe, reze lá uma ave-maria e um pai-nosso e fica com Deus. Mas nada disso acontece, e padre Frido apenas diz Que a graça e a paz te sejam multiplicadas, João, reze lá dez ave-marias e dez pais-nossos e fica com Deus.
E saíram os dois da igreja, João Simão e Pedro Tristão, ao mesmo tempo, como se fosse possível os dois terem conversado com padre Frido ao mesmo tempo. Como vai Tristão, Bem, Tá indo para o trabalho, Não, Se tiver um tempinho para um bate-papo, Agradeço mas deixa para uma outra vez, quero ir para casa pensar numas coisas que Padre Frido me disse, Tá bom, assim eu também faço isso que também estou necessitando, Até mais ver, Até.
E por ser o mundo redondo e dar voltas, talvez tenha ele dado duas voltas ao mesmo tempo, ou ainda pode ser que tenha passado duas vezes pelo mesmo lugar, só que uma vez com Pedro Tristão e outra com João Simão… Quem aqui vai saber dessas coisas.